Discurso na Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre AIDS, em Nova York, Estados Unidos, 27 de junho de 2001.

Vinte anos se passaram desde que foram identificados os primeiros casos da enfermidade que veio a ser conhecida como AIDS. Neste curto período de tempo, o impacto da epidemia foi devastador. Quase 60 milhões de pessoas foram infectadas pelo HIV. Quase 22 milhões morreram. Mais de 36 milhões estão vivendo com HIV/AIDS e necessitam de tratamento.

Infelizmente, a disseminação da epidemia e a taxa de mortalidade relacionada à AIDS estão crescendo rapidamente no mundo e essas tendências não serão revertidas a menos que a comunidade internacional empreenda ações decisivas para enfrentar esse imenso desafio. No ano passado, mais de 5 milhões de pessoas foram infectadas e 3 milhões morreram.

Até muito recentemente, era lugar-comum afirmar que o HIV afetava o sistema imunológico do corpo humano da mesma forma que a epidemia afetava o sistema imunológico dos países, composto de sua população, de sua economia e de sistemas de saúde e de educação.

Atualmente, essa afirmação não é mais sustentável. Embora não haja cura para a AIDS, sabemos que políticas consistentes e corajosas podem impedir a disseminação da doença e garantir uma vida normal e digna aos infectados pelo HIV. Para alcançar esses objetivos, nosso compromisso deve conter quatro elementos essenciais: prevenção, tratamento, direitos humanos e recursos.

Prevenção e tratamento se reforçam mutuamente e devem ser considerados em um enfoque integrado.

No que diz respeito à prevenção, há um amplo leque de medidas que se tem provado bem-sucedidas, tais como: acesso universal aos preservativos; garantia às mulheres de condições para o exercício de um papel central nesse contexto; adoção de programas relacionados à transmissão de mãe para filho; implementação de estratégias direcionadas aos grupos mais vulneráveis e aos que se encontram em situação de maior risco de infecção; inclusão de questões relacionadas ao HIV e à AIDS nos currículos escolares.

No Brasil, essas políticas têm gerado excelentes resultados, o que nos tem permitido reduzir a taxa de transmissão. Em nosso país, o número de pessoas vivendo com HIV/AIDS é hoje menos da metade do que as estimativas costumavam prever. Nosso enfoque integrado para prevenção e tratamento foi essencial par alcançar esse êxito. Em razão de nossa política de garantir tratamento universal e gratuito, a população se sente encorajada a aceitar testes voluntários e confidenciais, melhorando a notificação da AIDS em estágios iniciais e detecção de casos que de outra forma não seriam conhecidos. Além disso, as pessoas vivendo com HIV/ AIDS permanecem em contato estreito com o sistema de saúde, tanto com o sistema governamental, quanto com as ONGs que fornecem informação, aconselhamento e materiais preventivos. E, com o tratamento antirretroviral, essas pessoas conseguem diminuir sua carga viral. Sua auto-estima cresce e se sentem mais capazes e mais propensas a tomarem os cuidados requeridos para evitar a contaminação de outras pessoas. Assim, o tratamento tem um impacto positivo e formidável na prevenção, o que foi corretamente reconhecido pela Sessão Especial.

O ano de 1996 representa um marco na história da AIDS. Foi o ano em que a eficácia da terapia antirretroviral foi comprovada. Desde então, todo brasileiro vivendo com HIV ou com AIDS tem tido acesso gratuito à terapia. Atualmente, quase 100 mil pessoas estão tomando esses medicamentos no Brasil. Nossa estratégia tem recompensado. A taxa de mortalidade caiu aproximadamente em 50%. As hospitalizações tiveram uma queda de 75%. As doenças oportunistas foram substancialmente reduzidas. A epidemia se estabilizou e nossos serviços de saúde pública estão muito menos sobrecarregados. Na verdade, o fornecimento de tratamento adequado levou até mesmo ao reforço desses serviços.

A razão para o caráter sustentável dos custos de nossa política é a produção local de medicamentos. O Brasil produz a custos baixos oito versões genéricas de medicamentos antirretrovirais não patenteados. A maioria dos remédios fornecidos pelos laboratórios brasileiros é muito mais barata do que os importados. No ano passado, apenas dois medicamentos importados consumiram 36% do total dos gastos com compras de antirretrovirais. Atualmente, a competição efetiva ou potencial das companhias locais está induzindo as indústrias estrangeiras a baixar seus preços na ordem de 70% em média. Também vale notar que a produção local é controlada por meio de aplicação das boas práticas de fabricação, inspeção nos laboratórios farmacêuticos e testes de bioequivalência. Nenhum problema relacionado à qualidade dos medicamentos foi jamais comunicado.

Além disso, é importante enfatizar que essa produção está totalmente em conformidade com o acordo sobre propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio, conhecido como TRIPS. O Brasil é um membro fundador desse acordo e adaptou sua legislação em 1997, oito ante s do prazo de 2005. Ninguém contesta a relevância dos acordos internacionais sobre direitos de propriedade intelectual. As regras sobre patentes permitem o equilíbrio entre dois objetivos desejáveis: de um lado, o interesse privado dos criadores, que necessitam de fundos para as inovações e procuram oportunidade máxima de explorar suas invenções; de outro lado, o interesse público na disseminação ampla e imediata da tecnologia capaz de salvar vidas. O acordo TRIPS, com todos os dispositivos sobre a proteção do conhecimento científico e tecnológico, contém medidas para garantir a promoção da saúde pública. Estamos satisfeitos com o reconhecimento por esta Sessão Especial dos esforços de vários países em desenvolver indústrias nacionais para aumentar o acesso aos medicamentos e proteger a saúde de sua população. A Sessão também reconheceu que a questão dos preços dos remédios é fator significativo na luta contra a epidemia.

Outro fator essencial no combate ao HIV e à AIDS é o respeito estrito aos direitos humanos. Essa perspectiva deve desdobrar-se em dois componentes. De um lado, devemos combater o estigma que ainda está associado ao HIV e à AIDS, infelizmente, e eliminar outras formas de discriminação que contribuem para a disseminação da epidemia. De outro lado, devemos levar em conta que o acesso à medicação constitui elemento fundamental para alcançar a plena realização do direito humano ao mais alto padrão de saúde física e mental.

No Brasil, temo aprendido que as ONGs, sobretudo as de pessoas que vivem com HIV/ AIDS, devem participar ativamente nesse grande esforço. Nos últimos sete anos, mais de 1.500 parcerias com organizações não governamentais foram forjadas. Essa cooperação, na qual o governo investiu mais de US$ 40 milhões, tem sido eficiente e criativa. Mais de 600 ONGs trabalham atualmente com o governo, ressaltando questões fundamentais e contribuindo para a elaboração e a implementação de políticas públicas.

A cooperação é fundamental, tanto no nível nacional quanto no internacional. Baseado em nossa experiência nacional, o governo brasileiro tem estabelecido cooperação técnica com países da América Latina , do Caribe e da África.

Espera-se, contudo, um esforço maior dos países desenvolvidos, que podem contribuir mais para alcançar as metas estabelecidas nesta Sessão Especial. Nesse sentido, o Brasil apoia totalmente o estabelecimento de u fundo global para financiar a prevenção e o tratamento da AIDS, particularmente para os mais necessitados, sendo que os recursos para tanto devem ser compatíveis com a magnitude do desafio.

Estou também satisfeito com o fato de que a Sessão Especial reconheceu o princípio dos preços diferenciados. Os países em desenvolvimento não deveriam pagar o mesmo preço que os países desenvolvidos pelos remédios para a AIDS. Espero que as companhias farmacêuticas levem esse princípio em conta.

Outra iniciativa que deveria ser estimulada, e que tem sido implementada com êxito no Brasil, é o estabelecimento de um banco de dados na internet para divulgar os preços de remédios em diferentes países, o que certamente levaria à competição e à redução de preços.

Para concluir, gostaria de enfatizar que esta Sessão Especial representa um importante avanço, em que a comunidade internacional acordou um conjunto de princípios e estratégias globais para lidar com o HIV e com a AIDS, embora os países tenham suas circunstâncias particulares. Esta reunião demonstrou que há saída, que é possível combater a epidemia até mesmo em regiões mais pobres.

A Sessão Especial não deveria representar um ponto de chegada. Ao contrário, deve ser um ponto de partida, ou melhor, um ponto de inflexão, especialmente para os países mais afetados. O documento final da Sessão Especial será a Declaração de Compromisso. E realmente tudo depende de nosso compromisso. Um compromisso pelos direitos humanos, por prevenção, tratamento e medicamentos acessíveis. Em uma palavra, um compromisso pela vida.