Os argumentos contra os jogos de azar nunca foram tão bem fundamentados cientificamente como atualmente.

José Serra, O Estado de S.Paulo
24 de março de 2022 | 03h00

As propostas de legalização de cassinos, bingos e jogos de azar se sucedem com insistência. Sempre derrotadas, voltam a assombrar no ano seguinte. A bola da vez nesta roleta é o Projeto de Lei n.º 442, que acaba de ser aprovado na Câmara e, agora, tramita no Senado.

Eu tenho me batido contra essas propostas há muito. E o faço não por afã moralista ou para ser carola, como os proponentes da jogatina gostam de caracterizar seus adversários. Na verdade, impedir que a jogatina se alastre no Brasil não tem nada de reacionário. Os argumentos econômicos e de saúde pública contra os jogos de azar nunca foram tão bem fundamentados cientificamente como atualmente. E pretendo desenvolvê-los aqui.

Primeiro, gostaria de sublinhar a dificílima conjuntura que o País – e o mundo – atravessa. Os problemas gerados pela pandemia e seu controle são de uma extensão e complexidade talvez inéditas nas duas últimas décadas. A inflação se acelera mundialmente. Os custos dos alimentos e das matérias-primas tiveram alta expressiva e, ao que parece, duradoura. Temos, ainda, a situação de uma perigosa – e imprevisível – guerra em plena Europa. Diante de tantas premências e desafios, é quase inconcebível que a Câmara dos Deputados tenha adotado o regime de urgência para a deliberação dessa proposição.

Quase como um mantra, os proponentes da volta dos cassinos proclamam inexistentes efeitos desenvolvimentistas do jogo. Ao vê-los defender sua legalização, alguém seria levado a pensar que estão falando de novas indústrias, escolas, redes de saneamento ou hospitais.

Mas, o que é pior, não estão apenas propondo a volta dos cassinos tradicionais com suas roletas e mesas de pôquer e bacará. Insidiosamente, estão trazendo para o Brasil novas tecnologias de apostas – especialmente as chamadas slot machines eletrônicas. Esses equipamentos não apenas viciam, mas são feitos especificamente para viciar, como aponta o minucioso trabalho da antropóloga Natasha Dow Schüll, da Universidade de Nova York. No livro Vício Projetado (Addiction by Design, no título original em inglês), a autora demonstra que, diferentemente de outras formas de apostar, as slot machines eletrônicas têm uma interação de alta frequência com o jogador.

Segundo apurou a autora, o apostador é capaz de fazer até 1.200 rodadas em apenas uma hora. É que, em alguns equipamentos, as rodadas podem durar apenas três segundos. Essa alta frequência, associada à solidão do jogador e aos efeitos visuais e sonoros do aparato, gera um estado de transe psíquico que o faz permanecer jogando por horas e horas. O nível de sofisticação tecnológica é tamanho que as próprias poltronas são desenhadas para que a circulação das pernas dos jogadores seja otimizada, de modo a que não larguem a máquina.

De acordo com o psiquiatra Robert Breen, da Universidade Brown, os apostadores que regularmente jogam nessas slot machines se tornam viciados em um ano, enquanto em outras modalidades o tempo de consolidação do vício é de três anos e meio, em média.

O projeto em apreciação no Senado supostamente se preocuparia com os viciados em jogo, ao criar um cadastro de proibidos de entrarem em cassinos, bingos e outros espaços de jogo, inclusive virtuais. Como disse La Rochefoucauld, a hipocrisia é uma concessão que o vício faz à virtude. Longe de se preocuparem com os jogadores compulsivos, os cassinos dependem fundamentalmente deste público para sua lucratividade.

No artigo Custos e Tratamento do Jogo Patológico, o autor Henry Lesieur informa que 33% de toda a receita dos jogos de roleta, de carteado, slot machines e bingos vem de jogadores viciados. E o número de viciados não é pequeno. Estima-se que, no Reino Unido, 430 mil pessoas maiores de 16 anos têm problemas com jogo. Se a esse montante for somado o número de familiares, tem-se uma clara ideia da devastação provocada pelo jogo compulsivo.

Mas o Projeto n.º 442, além de conter defeitos que se repetem em vários países, contém alguns absurdos peculiares. A começar pela tributação que propõe uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) de apenas 17%. Assim, a tributação dos jogos de azar será 1/3 da carga tributária da gasolina, por exemplo. Seria cômico, se não fosse trágico.

Para ter uma ideia desse disparate, as loterias administradas pela Caixa tiveram uma receita total de R$ 16,7 bilhões em 2019. Desse total, educação, saúde e outras políticas públicas beneficiárias receberam R$ 7,9 bilhões, praticamente a metade! E a jogatina pagará somente 17% de Cide. Para azar dos brasileiros, ainda se decidiu que os prêmios terão Imposto de Renda (IR) limitado a 20%, enquanto nas loterias essa alíquota é de 30%. E inferior à última alíquota do IR sobre rendimentos do trabalho, que é de 27,5%.

Além disso, a rede de lotéricas da Caixa desempenha uma ampla gama de atividades, além da sua atividade principal. São agentes bancários na prática, dando capilaridade a várias políticas de assistência social. A rentabilidade dessa rede será ameaçada pela concorrência predatória – e vantagem tributária – de que os cassinos e bingos gozarão de acordo com as regras previstas no projeto.

Espero que o Senado rejeite essa proposição. A sorte está lançada!

*SENADOR (PSDB-SP)