Publicado no jornal Folha de S. Paulo, 29/11/2001

Vilmar Faria era um sociólogo com todos os títulos, com larga experiência docente e rigoroso e competente

Para quem não conhecia: Vilmar Faria, em matéria de estilo, era o simétrico do recíproco do Sérgio Motta. O contrário do trator. Mas no conteúdo eles tinham muitas coisas em comum: mesma geração, idêntico “projeto” para o Brasil, capacidade imensa de trabalho, dedicação à vida pública, saúde complicada e lealdade extrema ao Fernando Henrique, como amigo e como político.

Vilmar era o assessor mais próximo e mais influente do presidente, com quem mantinha relações de amizade desde meados dos anos 60. Em Brasília, acompanhava, avaliava e contribuía para definir os rumos de toda a política social do governo.
Estou convencido de que essa política, consubstanciada nas ações de educação, treinamento profissional, assistência e seguro social, reforma agrária, saúde e até telecomunicações, será, no futuro, com a estabilidade, a grande marca positiva do governo Fernando Henrique. Mas sem o Vilmar os resultados não teriam sido os mesmos.

Dos meus amigos próximos que vieram do passado de lutas estudantis, da JUC (Juventude Universitária Católica), da AP (Ação Popular) e da UNE (União Nacional dos Estudantes), Vilmar foi um dos que se mantiveram mais ligados à vida e à produção intelectuais. Era um sociólogo com todos os títulos, com larga experiência docente, aqui e no estrangeiro, rigoroso nas pesquisas e competente para coletar e analisar números. Mas não deixava de lado o engajamento político, embora seu estilo discreto, pouco exuberante, e sua timidez ocultassem esse aspecto essencial de sua vida.

Quando cheguei ao Chile, exilado, aos 22 anos, reencontrei-o com a Regina, sua namorada de Belo Horizonte, ambos fazendo pós-graduação na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais, a Flacso. Casaram-se em Santiago. Ante as carências financeiras comuns, decidimos os três morar juntos, dividindo um pequeno apartamento. Desde que, ontem cedo, fui avisado de sua morte, minha mente não parou de me transportar para aquele período, tão crucial para minha vida futura. Compartilhávamos de forma solidária as angústias do exílio, as esperanças e até as horas de lazer.

Refaz-se, de forma insistente, um mundo de pequenas situações, conversas e gestos, fruto daquilo que nunca envelhece em nós, a memória.

Era um homem sempre delicado nas relações com os outros, incapaz de agressões e, às vezes, sentia dificuldades até mesmo de se defender, nas raras oportunidades em que isso teria sido pertinente. Por esse motivo não se sentia confortável em situar-se na linha de frente de briga política. Em compensação era de uma solidariedade exaustiva com aqueles que, estando à frente, considerava seus parceiros na amizade e nas convicções políticas.

Comigo, por exemplo, sempre foi desse jeito. Na época da eleição para a UNE, ele se opôs aos que se opunham à minha candidatura sob o argumento de que eu era “paulista”. No Chile, foi graças a ele que obtive meu primeiro emprego, na Flacso, como professor de economia para sociólogos. Ele e a Regina foram nossos padrinhos de casamento. Depois do exílio, em 1978, os dois nos ajudaram na instalação em São Paulo. Ambos nos acompanharam durante o governo de Franco Montoro.

Em Brasília, o Vilmar deu-me toda a cobertura possível quando ocupei o Ministério do Planejamento. E foi quem de fato me persuadiu a assumir o Ministério da Saúde, depois do convite do presidente Fernando Henrique.

Além disso, como especialista em pesquisas, inclusive de opinião, mineiro e conhecedor de minhas possibilidades e limitações, nunca deixou de se debruçar sobre as análises acerca dos desdobramentos futuros de minha vida política. Não perco apenas um amigo, mas um parceiro entusiasta na reflexão e na ação.

Uma curiosidade para os leitores da Folha. No começo dos anos 80, quando eu era editorialista do jornal, sugeri ao Octavio Frias e ao Otavinho que conversassem com o Vilmar, na época meu colega da Unicamp e do Cebrap, sobre a possibilidade de organizar um serviço próprio de pesquisas de opinião. Houve a conversa e o trabalho de assessoria do Vilmar. Essa foi a origem do Datafolha.

José Serra, 58, economista, é ministro da Saúde e senador licenciado pelo PSDB de São Paulo. Foi ministro do Planejamento (governo FHC).