A má sorte paulistana

Folha de S.Paulo
6 de outubro de 1988

O lugar geométrico das carências e das desigualdades no Brasil, nas últimas décadas, tem se deslocado a toda velocidade do campo para as cidades maiores, de forma mais rápida que o próprio processo de urbanização. De fato, e para decepção de muitos, a industrialização em nosso país, apesar do seu extraordinário dinamismo, não foi capaz de promover a integração e o grau elevado de igualdade social sonhados por intelectuais e homens públicos que a defenderam como supremo objetivo nacional desde os anos 30 e 40.

Deixando de lado os fatores históricos (culturais, sociológicos e econômicos) que explicam essa frustração e sem aprofundar na análise dos indicadores conhecidos a respeito da extrema concentração demográfico, do sub-emeprego, da regressividade na distribuição da renda, da precariedade dos serviços públicos, do desconforto, da insegurança, preocupar-nos-emos com os obstáculos mais imediatos à melhora da qualidade de vida nos grandes centros.

Comecemos com o mais citado: a falta de recursos. Esta pode parecer uma desculpa tão óbvia quanto válida para todo tipo de governo no Brasil, em município ou Estado de qualquer tamanho, para não mencionar o governo federal. Ocorre, porém, que no caso dos municípios grandes prevalece a máxima orwelliana meio às avessas: todos são iguais só que alguns menos iguais do que os outros.

Três exemplos claros, para encurtar o raciocínio:
(i) No rateio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que abocanha 17% do Imposto de Renda e do Imposto aos Produtos Industrializados, (passará a 22,5% na nova constituição) o fator população torna-se constante a partir de 156 mil habitantes! Mas ainda, 10% desse fundo vai para as capitais, sendo que nelas vive 25% da população brasileira;
(ii) O Imposto sobre Serviços, importante fonte de receita própria para as grandes cidades (menor o tamanho, maior o peso das prestações de serviços), baseia-se numa lista formulada há quase vinte anos, estando portanto, totalmente desatualizada;
(iii) Do total do Imposto de Circulação de Mercadorias, 20% vai para os municípios; acontece que só três quartos desse total são distribuidos segundo o critério da produção (valor adicionado) ficando o resto por conta de outras normas. E dá-se o caso de que as cidades grandes são em geral as maiores geradoras do valor adicionado.

As desventuras tributárias, juntam-se outras como as chamadas deseconomias de aglomeração. A partir de certo ponto, quanto maior a cidade maior o custo por habitante do sistema de transporte coletivos, esgoto e água, combate à poluição, abastecimento, sem mencionar o preço dos terrenos e os custos das desapropriações … A vida não fica mais cara apenas para os cidadãos, mas também para as Prefeituras.

Daí saltamos para a política. Primeiro, o número de vereadores nas cidades grandes é pequeno, sendo sua atuação difícil e de difícil fiscalização pelos eleitores. Segundo, os votos nos grandes centros urbanos são mais pulverizados entre candidatos a deputado e, na verdade, constituem as maiores vítimas da picaretagem eleitoral. O resultado é a sub-representação. Não mais do que 20% dos deputados estaduais e federais paulistas são vinculados à região da Grande São Paulo, apesar de que nessa área vive perto de três quartos da população do Estado. Tal situação, evidentemente, acaba condicionando a orientação das despesas federais e estaduais.

Outro fator, mais “subjetivo” refere-se à verdadeira praga representada pela falta de planejamento dos investimentos próprios dos municípios maiores, a tendência não às grandes obras, que não são um mal em sí, mas as grandes obras que distorcem ainda mais o crescimento das cidades, privilegiando, por exemplo, o transporte individual, favorecendo a especulação, piorando os padrões de uso do solo e criando mais adiante a necessidade de outras grandes obras para corrrigir suas consequências de médio e longo prazos… Tudo, evidentemente, para beneficiar, a curto prazo, a colheita de dividendos eleitorais e outros menos conspícuos …

Enfim, o tema é vasto e incondensável nesta coluna. Para simplificar, introduzimos um outro fator, reconhecendo que é pouco científico: a má sorte da população quando escolhem por ela, ou ela escolhe, seu prefeito. No primeiro caso, São Paulo teve sorte, quando foram escolhidos Olavo Setúbal e Mário Covas, por exemplo. No segundo, referente às eleições, a sorte ficou, por exemplo, com Recife, ou Curitiba. São Paulo, nessa, teve pé frio.

José Serra