A proteção ao emprego e a constituinte

Folha de S.Paulo
2 de março de 1988

“A nova Constituição não será a dos sonhos de ninguém, nem meus, nem do presidente desta Assembléia, Ulysses Guimarães, nem de nenhum grupo específico da Constituinte. Se assim fosse, não seria uma boa Constituição. A boa Constituição deve representar a ampla maioria deste plenário, que expressa a maioria do país”.
Senador Mário Covas, líder do PMDB na Constituinte.

Como resultado de um entendimento político imprescindível para a marcha da Constituinte e, sem exagero, importante para o próprio processo democrático, aprovou-se o seguinte dispositivo, referente à questão da estabilidade no emprego:
“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,além de outros que visem à melhoria de sua condição social: Relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos da lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos” (Artigo 6º, inciso 1).

A meu ver, esse dispositivo é mais adequado do que o aprovado pela Comissão de Sistematização, que dizia o seguinte:
“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condição social: Garantia de emprego, protegido contra despedida imotiva, assim entendida a que não se fundar em:
a) contrato a termo nas condições e prazos da lei;
b) falta grave, assim conceituada em lei;
c) justa causa, baseada em fato econômico intransponível, fato tecnológico ou infortúnio da empresa, de acordo com critérios estabelecidos na legislação do trabalho”.

É melhor, também, do que o dispositivo contido no projeto do chamdo “Centrão”:
“São direitos dos trabalhadores:
“Estabilidade no emprego, após doze meses, mediante garantia de indenização correspondente a um mês de salário por ano de serviço prestado, nos casos de demissão sem justa causa, e nos casos de força maior, de indenização na forma da lei”.
Como procurei demonstrar na ocasião, o dispositivo da Sistematização, mais do que garantia de emprego iria, a meu ver, provocar confusão no mercado de trabalho, prejudicando empregados e empregadores e congestinando ainda mais a já entupida Justiça do Trabalho. É bem conhecida a ansiedade provocada entre os empresários pelo dispositivo da Sistematização, a meu ver, injustificadamente, pois não assegurava em absoluto a vitaliciedade do emprego. Aliás, por essa mesma razão, tampouco se justificava qualquer euforia entre os sindicatos.

Lembro que, na ocasião, durante as sessões da Comissão da Sistematização, a liderança do PMDB propusera, e fora derrotada por uma aliança entre setores da esquerda e da direita, que o dispositivo fosse:
“Além de outros, são direitos dos trabalhadores:
“Contrato de trabalho protegido contra despedida imotivada ou sem justa causa, nos termos da lei”.

De fato, esse dispositivo seria o mais pertinente, porquanto fixava o princípio e entregava à lei o tratamento da questão, comandado pelo preceito constitucional. Por quê? Porque só a lei tem a flexibilidade, a possibilidade de detalhamento e a temporariedade necessárias para tratar corretamente do problema, dadas a forte heterogeneidade da estrutura produtiva e do mercado de trabalho no Brasil, bem como dinamismo do desenvolvimento e das mudanças sociais e econômicas em nosso país.
Aliás, a impropriedade do dispositivo citado da Sistematização era tão evidente, que foi necessário introduzir dois outros dispositivos no mesmo texto para, supostamente, “consertar” seus defeitos: a) Contemplar a figura da indenização em outro inciso; b) Excluir as empresas de até dez empregados. Este último dispositivo suporia excluir cerca de um terço da força de trabalho e, além disso, forçar tanto a subdivisão artificial de empresas como a informalização do mercado de trabalho (em ambos os casos com vistas à registrar menos de dez empregados).

Por outro lado, a proposta do Centrão, na prática, poderia ser resumida assim: “Todos poderão ser demitidos mediante indenização”, além de já fixar a sua fórmula de cálculo. Nesse sentido, o único e exclusivo direito possível seria o de indenização, deixando a descoberto ou passando por cima de problemas como, por exemplo, o das demissões coletivas, que não deveriam ser tratados de modo equivalente ao das demissões individuais.

O dispositivo agora aprovado (citado na abertura deste artigo) expressa de forma clara o resultado de um entendimento e este sempre pressupõe concessões de parte a parte. Introduz-se, já na Constituição, o princípio da indenização, mas contempla-se de forma clara a possibilidade de outros direitos, colocados no mesmo nível de primeiro. A lei complementar caberá tratar adequadamente do assunto, único caminho para dar conta das peculiaridades de nossa economia e nossa sociedade. Aliás, como disse o líder do PMDB na Constituinte, senador Mário Covas: “A PMDB foi muito coerente nesse assunto. Na Comissão de Sistematização, defendia um dispositivo que fixava o princípio e remetia o resto para a lei, sem fazer maiores especificações. Agora, o novo dispositivo também remete para a lei, especificando que esta preverá desde a indenização até qualquer outro direito que o legislador determine”.

Além disso, é importante deixar claro que:
1. As situações de estabilidade hoje existentes (Cipa, gestantes, resultantes de acordos coletivos de trabalho) não ficam prejudicadas. Mesmo assim, e não obstante a redundância, isso será explicitado nas Disposições Transitórias.
2) Nas mesmas Disposições Transitórias será fixado um dispositivo prevendo indenização até que a lei complementar seja feita, num montante provavelmente igual a 40% do FGTS recolhido pela empresa (ou seja, aumenta 30 pontos percentuais, com relação à multa equivalente a 10% do Fundo de Garantia).

Essa proposta foi feita pelo Centrão, que parece achar absorvível a introdução, no passivo das empresas, de um montante equivalente a uns 7 bilhões de dólares. Evidentemente: a) As empresas de alta rotatividade de mão-de-obra (construção civil, por exemplo) serão pouco oneradas; b) Muitas empresas privadas poderão ser tentadas a aumentar sua rotatividade antes de a nova Constituição ser promulgada, c) Os maiores ônus recairão sobre as empresas públicas, face ao maior período de permanência dos seus empregados e à impossibilidade prática do procedimento indicado no item B. Como é óbvio, acréscimo de passivo não significa despesas imediatas mas futuras; ao mesmo tempo é ingênuo supor que tais despesas não serão realizadas em sua plenitude pois nenhum empregado vai querer se aposentar numa empresa sem receber a indenização e, nesse sentido, procurará criar as condições para recebê-la (como ocorria, aliás, na vigência da legislação pré 1964); d) Haveria um problema complicado de contornar: como seria indenizado um trabalhador que, depois de dez anos numa empresa, mudasse para outra, por decisão própria (e, portanto, sem sacar seu FGTS), e fosse despedido sem justa causa depois de um par de meses? A nova empresa pagaria a multa de 40% sobre o FGTS que a empresa anterior recolheu? Se fosse assim, é claro que nenhuma empresa contrataria alguém que “carregasse” FGTS consigo. Isto implicaria em diminuição da mobilidade “positiva” do trabalho (aquela que é decidida pelo trabalhador), inclusive porque a primeira empresa, se não quiser perder o trabalhador, não concordará em despedi-lo sem justa causa, impedindo-o de sacar seu FGTS.

Uma posição alternativa que foi levantada quanto à indenização seria a seguinte: ao invés de utilizar o FGTS como unidade de cálculo para a indenização, se utilizaria um salário por ano de serviço, mas sem retroatividade. Com esta proposta, os trabalhadores atuais disporiam inicialmente de um ativo menor (e as empresas teriam um acréscimo menor no seu passivo) como consequência da não retroatividade da indenização, mas ganhariam mais no futuro, pois o FGTS acumulado não é uma boa aproximação para um salário por ano de trabalho. Por que? Porque reflete a soma de salários recebidos ao longo dos anos e não o múltiplo do último salário anual, que incorpora a progressão funcional do empregado na empresa. Além disso, o FGTS sempre foi corroído pela subestimação da correção monetária em relação à inflação (em proporção folgadamente suficiente para contrabalançar o acréscimo resultante dos juros) e certamente continuará sendo no futuro.

Em todo caso, a discussão sobre essas alternativas deve ser consideravelmente aprofundada e aberta às opiniões dos diferentes setores mais diretamente interessados, não faltando tempo e condições para isso nas próximas semanas.

Por agora, pode-se afirmar é que o dispositivo aprovado nas disposições permanentes representa um bom avanço do ponto de vista dos assalariados, uma conquista política dentro do Congresso e uma contribuição ao processo democrático, pois não faltaram interesses poderosos que desejavam prolongar o impasse em torno da questão, como forma de desgastar a Constituinte, à custa da própria estabilidade institucional do país.

José Serra