Ao invés do decreto-lei

Folha de S.Paulo
7 de abril de 1988

Uma das melhores inovações da Assembléia Nacional Constituinte refere-se à extinção da figura do decreto-lei como existe hoje e à instituição, em seu lugar, das “medidas provisórias com força de lei”. Tal inovação foi conduzida pela liderança do PMDB, em particular pelo deputado Nélson Jobim, levando em conta especialmente a experiência italiana. Representou um criativo ponto de equilíbrio entre a atual legislação e a alternativa extrema de impedir que o Poder Executivo, em matéria de relevância e urgência, pudesse atuar de forma mais expedita e eficaz.

A figura do decreto-lei constitui um poderoso instrumento de concentração de poderes e arbítrio em mãos do Executivo, em detrimento do Legislativo, tendo sido usado à saciedade durante o regime autoritário e mesmo na Nova República, sem qualquer inibição extrapolando até os limites fixados pela própria Constituição vigente. Cumpre observar que o instrumento do decreto-lei se reproduz inclusive nos planos estadual e municipal. Aliás, uma prova de que é possível governar bem sem esse recurso autoritário está no fato de que o governo Montoro, em São Paulo, não o utilizou nenhuma só vez em quatro anos.

Como é o decreto-lei? Suas características essenciais são as seguintes: quem o estabelece é o presidente da República, motivado, em tese, pela urgência ou interesse público relevante, sem aumento de despesa e exclusivamente em matérias de segurança nacional, finanças públicas (inclusive normas tributárias), criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. A vigência do decreto-lei é imediata, a partir do dia em que é enviado ao Congresso. Este, a partir do recebimento do decreto, tem um prazo restrito para aprová-lo ou rejeitá-lo.

Aqui são encontradas as características mais absurdas desse instrumento legislativo: primeiro, o Congresso não pode modificar o decreto-lei; segundo, se não apreciá-lo em 60 dias, seguidos, em regime de urgência, de dez sessões consecutivas (o que pode ser facilmente conseguido por uma agrupação governista razoável), o decreto-lei é considerado aprovado, por decurso de prazo. E no caso, remoto, de rejeitá-lo (praticamente nunca houve isso), os efeitos dos atos já praticados entre sua edição e a rejeição permanecem.

Mesmo na Nova República, como dissemos, houve abusos e não poucos: foi editada quase uma centena e meia de decretos-leis, sendo a grande maioria aprovada por decurso de prazo. Outro problema, que reiteradamente se coloca, é do que muitas vezes os decretos são editados e não são lidos imediatamente e só têm sido considerados como “recebidos” os decretos-leis lidos. No governo Figueiredo houve casos, de “leitura” somente um ano após a publicação do decreto-lei.

As “medidas provisórias” aprovadas no plenário da Constituinte contêm mudanças essenciais em relação ao atual decreto-lei. Primeiro, não se estabelece restrição quanto às matérias pertinentes, fixando-se, isto sim, a necessidade de que se refiram a matérias de urgência e interesse público relevante. Segundo, embora as medidas provisórias tenham vigências imediata, os atos já praticados serão atingidos, caso o Congresso venha a rejeitá-las. Caberá ao Legislativo disciplinar as relações jurídicas decorrentes das medidas rejeitadas e que haviam entrado em vigor. Terceiro, o prazo para apreciação é de 30 dias (na Constituição italiana são 60 dias), findos os quais, se não tiverem sido convertidas em lei, as medidas provisórias serão consideradas rejeitadas por decurso de prazo e perderão sua eficácia desde a data em que foram anunciadas. Quarto, o Parlamento poderá alterar o texto e o conteúdo das medidas provisórias enviadas pelo Executivo.

Sob formas ligeiramente diferentes, existem instrumentos parecidos às medidas provisórias, além da Itália, na Espanha, na França e em Portugal, para citar exemplos de alguns países insuspeitadamente democráticos. Sua justificativa maior reside na necessidade de se dotar o Executivo de capacidade e flexibilidade para atuação rápida e eficaz, dentro de sociedades e economias complexas, em situações de urgência e em matérias extremamente importantes. Há medidas cujas implementações não podem aguardar um ou dois meses, seja porque a conjuntura política ou econômica assim o exige, seja porque a defasagem entre o anúncio da intenção de adotá-las e sua efetiva implementação pode simplesmente inviabilizá-las devido, por exemplo, a efeitos provocados na economia.

Talvez parte da reação contrária às “medidas provisórias”, provenham de duas deformações que ressaltam da experiência passada do decreto-lei, e que se prolongam até hoje. Primeiro, o Executivo realmente tem cometido abusos, considerando como matéria de urgência coisas que são tais, além de incluir assuntos que a atual Consituição não prevê como passíveis de decretos-lei. A respeito basta um exemplo (ou um risco) futuro: a ameaça de criação de Zonas de Processamento de Exportações (ZPEs), na intenção do Ministério da Indústria e do Comércio, mediante decreto-lei. Essa idéia, por absurda que pareça, pois não há qualquer urgência, tem sido defendida oficiosamente mediante um argumento do tipo: “se não for assim a medida não se viabilizará, pois o Congresso não aprovaria uma lei dessa natureza”. Pode haver maior desrespeito no tratamento do instituto do decreto-lei e ao papel que o Legislativo deveria ter na concepção clássica da divisão de poderes?

Outro problema que tem sido levantado – especialmente pelo deputado Michel Temer, qualificado professor de direito constitucional – já foi insinuado anteriormente: na prática, o “recebimento” do decreto-lei tem sido confundido (pelo Congresso) com sua leitura e, enquanto esta não ocorre, o prazo que o Legislativo dispõe para apreciá-lo não começa a contar. Ao mesmo tempo, o decreto-lei torna-se vigente no dia da sua edição. Isto é realmente abusivo, mas recusar o instrumento das “medidas provisórias” em virtude da suposição de que a distorção seja mantida equivale a jogar fora a criança junto com a água do banho… De fato, pela redação do parágrafo único do artigo que trata das medidas provisórias, o prazo de 30 dias para apreciação passa a contar a partir da data da publicação, eliminando-se a possibilidade de defasagem criada devido à diferença entre recebimento e a “leitura”.

Uma terceira objeção provém da não limitação do âmbito das “medidas provisórias” em relação ao do decreto-lei regulado na atual Constituição. De fato, no texto aprovado pela Constituinte, não são especificadas as matérias passíveis de “medidas provisórias”. Significa isto reforçar a tirania do Executivo? Não, pois há um aumento considerável da interferência do Legislativo na utilização do instrumento, de modo a coibir, com vantagem, os abusos atuais.

Por outro lado, precisamente devido ao maior peso do Legislativo na nova Constituição, não há por que restringir as matérias passíveis das medidas provisórias. É preciso ficar claro, além disso, que a delimitação, durante a vigência da atual Constituição, nunca “foi para valer”, do ângulo do Executivo. A partir da nova Constituição bastará ao Parlamento considerar que uma determinada medida não é urgente e relevante para o interesse público, para, então, negar sua aprovação. Nesse sentido, listar na Constituição as matérias pertinentes poderia trazer limitações inconvenientes, e hoje imprevisíveis, para o futuro.

José Serra