Caminho errado

Folha de S.Paulo
14 de junho de 1988

As emendas sobre anistia de crédito apresentadas à Constituinte têm reunido apoio de setores de todo o espectro político, da esquerda à extrema direita. Além desse fato estranho, e sem duvidar da boa intenção dos autores das emendas, a quem respeito, permito-me registrar equívocos ou omissões que têm presidido a defesa das propostas.

1) Aparentemente, ignora-se que em 1987 houve tentativas de aliviar a situação dos micro, pequenos e médios empresários que se endividaram durante o Cruzado, a juros fixos e baixos, sofrendo, posteriormente, quando a inflação explodiu, o pesado ônus da correção monetária. No caso da agricultura, em meados de 1987 foi cancelada a correção monetária do período de março de 86/fevereiro de 87 bem como a correção até junho desse ano (Centro-Sul) ou dezembro (nordeste). Ambas as medidas custaram, para o Tesouro, US$ 3 bilhões. Na área urbana, entre fevereiro e abril de 1977 reduziu-se a correção para 75%; em maio e junho definiu-se um rebaixamento próximo dos 50% e uma quase-carência de seis meses (até janeiro). A partir daí entrou a correção monetária plena mais juros de 0,5% ao mês. O Tesouro (governo) bancou o custo, permitindo que os bancos obtivessem 50% dos recursos necessários mediante liberação de compulsório.

2) Até março, no caso dos citados empréstimos urbanos e rurais, os índices de pagamentos ao sistema financeiro e, para o Banco do Brasil, eram elevados. Evidentemente, a partir de abril, com a perspectiva de anistia, tais índices têm caído um pouco, mas continuam altos.

3) Quem acha que a anistia golpeará principalmente o grande capital bancário privado está enganado. Do total das perdas do sistema financeiro (cerca de US$ 10 bilhões, segundo o Banco Central), mais de 75% caberá aos bancos oficiais federais, estaduais e de desenvolvimento; para estes últimos, como o BNDES, a perda se prolongará durante anos. Mais ainda, as perdas do Banco do Brasil e do Banco do Nordeste equivalerão, respectivamente, a 2,7 vezes e 94% do patrimônio líquido desses bancos; para os bancos privados, 24%; para os estrangeiros 4,5%. Entre os bancos privados, a repartição é muito desigual: para o City ou o Safra as perdas são próximas a zero. Para outros, a ameaça de quebra será enorme. Há um banco estadual cuja perda equivalerá a quatro vezes o patrimônio líquido; paa outros três bancos, de 2,3 a 2,7 vezes.

4) Quem pagará as perdas? No caso dos bancos oficiais, será o governo, direta ou indiretamente, via inflação e/ou cortes de gastos. Sobre quem recai o custo dessas pertubações? Sobre os setores mais desprotegidos, que pagarão mais pelo pouco que consomem, consumirão menos serviços públicos ou perderão seus empregos. Infelizmente, não há outra alternativa.

5) Há muitos devedores que estão em dificuldades. Mas outros não. Por que dar benefícios a estes? E os que pagaram os empréstimos, por vezes fazendo sacrifícios? Não merecem o dinheiro de volta? A Justiça não lhes dará ganho de causa? E os outros setores que perderam com o Cruzado? Os atuais aposentados do INPS, por exemplo, hoje o setor social economicamente mais degradado do país? E os pequenos mutuários do SFH? Os que perderam na bolsa com as mudanças de regras de jogo? Os que perderam no FGTS com o desaparecimento de 15 dias de correção monetária no início do Plano Bresser, ou com a forte subestimação desse índice em 1980? Os funcionários públicos sem dois meses de URP? E os assalariados que perderam com a subestimação do aumento do custo de vida em 1973 ou com a Lei 2.065? Por que recompensar uns e não outros?

Sou absolutamente a favor de socorrer os micro, pequenos e médios empresários devedores que estão em dificuldades porque suas receitas não contrabalançaram a galope inflacionário médio, que regula a taxa e juros nominal. O governo deveria propor algo e atuar rapidamente nesse sentido. Mas fazê-lo caso a caso, via refinanciamentos, dilatações, carências e descontos parciais, o que é muito diferente de uma anistia geral, ampla e irrestrita para todos, paga não pelos poderosos mas pelos desprotegidos.

José Serra