Cauda errada

Folha de S.Paulo
31 de maio de 1988

Depois de 16 meses de trabalho árduo, é fundamental impedir que a reta final da Constituinte – a ser percorrida na próxima votação das Disposições Gerais e Transitórias – se transforme numa linha sinuosa, labiríntica, que atrapalhe a conclusão do trabalho e deteriore a qualidade no novo texto constitucional.

Não me refiro às questões que têm sido mais comentadas, como é o caso da duração do mandato do atual presidente, da anistia ou das eleições municipais. Em tese, são questões, além de relevantes, pertinentes às disposições citadas, cujo fundamento, aliás, é cuidar da adaptação do quadro político-institucional à nova ordem constitucional que prevalecerá.

O problema é outro: na prática, a finalidade primordial das Disposições Gerais e Transitórias tem sido pervertida nas últimas constituições brasileiras, que passaram a conter artigos absolutamente causísticos, muitas vezes de natureza corporativista ou clientelística, mais apropriados para leis ordinárias, decretos ou portarias. Este fenômeno é invocado por alguns como precedente para justificar que os constituintes de 1987/88 façam o mesmo.

Os contra-argumentos, no caso, são dois. Primeiro, equívocos anteriores não devem justificar novos. Segundo, o novo texto – a julgar pelo que foi incluído nos projetos do Centrão e da própria Sistematização, bem como pelo volume de emendas adicionais apresentadas – caminha para ter um número incomparavelmente maior de casuísmos do que as transitórias das outras constituições. Por quê?

Afora várias razões, existe um fator que é extramente importante e elucidativo: sufocado durante tanto tempo pela centralização do poder de iniciativa e decisão nas mãos do Executivo, o Legislativo não confia que, no futuro, possa vir a promover medidas que considera importantes, através de leis ordinárias ou emendas e do exercício de suas atribuições de apreciar (e emendar) as leis orçamentárias. O caminho mais seguro, além de rapidíssimo, seria o da inclusão de tais medidas na Constituição, sem maiores delongas ou grandes tramitações.

A razão pode ser compreensível e até certo ponto justificada, mas o remédio, creio, é errado. A inclusão de um sem-número de dispositivos nas transitórias cuidando de temas extremamente diversificadas e relativamente detalhados ou particulares, dificulta a adequada discussão de seus méritos e implicações, numa Assembléia que não está (e nunca poderia estar) preparada para isso. Além disso, e este é um aspecto natural o jogo e na negociação política, passa a ser inevitável a troça de apoios, circunstância que só faz reforçar o aspecto negativo (pouca reflexão) apontado.

Por último, amplia-se, também, o engessamento excessivo da realidade, pois, no futuro, toda alteração de mudanças na Constituição, enquanto as leis ordinárias, por exemplo, são muito mais flexíveis e passíveis de detalhamento e de alteração ao longo do tempo. Não é evidente que isso tudo enfraquecerá a eficácia ou a legitimidade da nova Constituição? E não é esta a ameaça que os Constituintes mais desejam afastar?

Os exemplos de dispositivos pouco adequados para uma Constituição são numerosos. Não cabe desmerecer seus autores, pois a intenção da grande maioria é atender o interesse público. Os problemas, insisto, residem na falta de pertinência e na pressa – adversária implacável de análises cuidadosas sobre méritos e implicações.

O exemplo talvez mais eloquente se refere ao dispositivo que coloca em movimento um trem da alegria que transitará pela União, pelos Estados e pelos milhares de municípios brasileiros (incluindo autarquias e as empresas públicas) carregando a estabilidade sem concurso para servidores e empregados com mais de cinco anos. Imagine-se por exemplo, o que ocorreria numa empresa como a VASP, afetada por essa medida, ou, então, nas universidades públicas, cuja precariedade em matéria de qualidade seria perpetuada pela efetivação em massa de professores e auxiliares sem concurso.

Disse com propriedade o deputado Arthur da Távola que seria importante persuadir os parlamentares a retirarem a maior parte das emendas e que “se isto não der certo, corremos o risco do rabo da Constituição ficar maior que o corpo”. Não apenas isto. Ao invés de o cachorro abanar a cauda, esta é que abanaria o cachorro.

José Serra