Constituição no fim

Folha de S.Paulo
6 de setembro de 1988

Praticamente, já temos uma nova Constituição, com as virtudes e defeitos que envolvem a principal representação política da população brasileira: o Congresso Nacional.

1. A pergunta que muitos se fazem, sobre a possível duração dessa Constituição, está mal colocada. A questão é outra: manter-se-á e consolidar-se-á o regime democrático nos próximos anos? Se isso ocorrer, os principais artigos da Nova Carta Magna considerados defeituosos poderão ser corrigidos, como tem ocorrido, aliás, em Portugal. Se não ocorrer, certamente não terá sido por causa do novo texto constitucional.

2. Disse acima “praticamente” porque falta ainda uma etapa importante: a revisão e rearrumação do texto aprovado no segundo turno. Isto provocará, certamente, discussões no plenário da Constituinte. A simples mudança de lugar de uma frase, ou sua reclassificação de inciso para parágrafo (ou vice-versa), a supressão de uma vírgula ou a inclusão de ponto podem alterar completamente o significado de um determinado dispositivo. Não tenha dúvida o leitor que ainda restarão muitos pontos polêmicos para o plenário analisar e avaliar.

3. A principal mudança no capítulo tributário não foi, exclusivamente, a redistribuição de receitas da União em favor dos Estados e municípios, cujo significado, é bom notar, foi prejudicado pela falta de um dispositivo claro e disciplinado da redistribuição de funções e encargos. Outra mudança absolutamente crucial foi a fusão – de cinco impostos federais (impostos únicos sobre combustíveis e lubrificantes, sobre energia elétrica e sobre minerais, bem como sobre comunicações e transportes) no Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), que é estadual. Isto envolve simplificação e modernização (são impostos em cascata, acumulativos, que passarão a incidir sobre o valor adicionado). Acrescente-se a flexibilidade das alíquotas do ICM, que permitirá atenuar a regressividade do sistema tributário, ou, ainda, a exigência de que o Imposto de Renda seja universal, abrangente e não possa privilegiar nenhuma categoria econômica, social ou profissional.

4. Dentro o título aprovado na área de finanças públicas há outro tema essencial pela sua importância que, curiosamente, não tem merecido maior alteração entre os setores que tem opinado sobre a nova Carta. Refiro-me ao capítulo sobre orçamento, que poderá trazer uma verdadeira revolução no campo do gasto público no Brasil. Ampliou-se de forma responsável, a participação do Legislativo na elaboração do orçamento e ampliou-se, também, a abrangência do orçamento, que se desdobrará em três partes: o orçamento fiscal propriamente dito (que incluirá incentivos e subsídios), o orçamento da Seguridade Social (inclui previdência, saúde e assistência social), e o orçamento de investimentos das empresas estatais. Além disso, uma lei de diretrizes orçamentárias, no primeiro semestre, balizará as prioridades que condicionarão os orçamentos citados. E fica constitucionalmente limitado o endividamento público, fonte de inesgotável irresponsabilidade para governos em fim de mandato.

5. O tabelamento dos juros reais na Constituição, a meu ver, é inapropriado para uma carta Magna, é irrealista e equivocado (se não fosse irrealista teria efeitos perversos, contrários aos que se pretendeu). É importante compreender, em todo caso, que não é auto-aplicável, Precisará de lei complementar. E mesmo que fosse auto-aplicável não justificaria tal fuga ao “black”. Nesta área, o governo precisa atuar e até as paredes do Banco Central sabem que a questão principal reside na área de conversão “informar” da dívida externa. Sobre isso há acordo de todos os economistas que se prezem, mais ou menos ortodoxos.

6. Ente vários, o dispositivo mais absurdo da nova Carta, embora inócuo, é o que manda “descentralizar” as universidades públicas para as cidades de “maior (maior mesmo) densidade populacional”!

José Serra