O jogo errado

JOSÉ SERRA*
Especial para a Folha
29 de março de 1998

A abertura de cassinos no Brasil, prevista no projeto de lei em tramitação no Senado, é vista com simpatia por uma ampla corrente de opinião: políticos, artistas, radialistas etc. Existe até quem sonhe em ressuscitar Grande Otelo, Ivon Cury e Dalva de Oliveira, atraindo visitantes famosos como nos tempos do cassino da Urca, nos anos 40.

Por que o apoio aos cassinos é significativo? Em primeiro lugar, porque a campanha a favor é bem organizada e conta com recursos de interessados na exploração dos negócios. Além disso, concentra-se numa tese simples (embora falsa) e fácil de entender: cassinos significam mais empregos para o Brasil e suas regiões, receita líquida para os governos e crescimento econômico para todos.

Entre os interessados, há brasileiros-estadunidenses (provavelmente ligados à máfia) empenhados em fazer negócios e até pessoas crédulas nos efeitos desenvolvimentistas do jogo. Há, mesmo, quem argumente que a proibição dos cassinos fere os direitos individuais _uma tese que poderia ser facilmente invocada para liberarmos o consumo de crack e o tráfico de drogas, ou abolirmos a obrigatoriedade do cinto de segurança.

Já os oponentes do jogo estão dispersos e não têm recursos _quem vai investir dinheiro contra? Mas têm argumentos. Vejamos alguns deles.

Em primeiro lugar, os cassinos não trarão recursos externos significativos para o Brasil, por meio de turistas estrangeiros que viriam jogar aqui ou de brasileiros que deixariam de ir jogar lá fora. Algum patrício rico abandonaria Montecarlo ou Las Vegas para fazer suas apostas no Oiapoque? No Chuí? E mesmo que passasse a ter essa estranha preferência verde-amarela: gostaria de posar para a revista “Caras” perdendo milhares de reais e chamando a atenção do Imposto de Renda? Quanto aos estrangeiros, por que teriam também esse súbito acesso de verde-amarelismo?

Aliás, os cassinos provavelmente aumentariam o déficit do balanço de pagamentos, face à importação de equipamentos e às remessas de dividendos colhidos pelos capitais estrangeiros que dominariam o setor e que hoje até financiam a campanha pró-cassinos.

Em segundo lugar, tenhamos presente: de onde viria a receita dos cassinos? Evidentemente, do bolso dos jogadores, principalmente da classe média para baixo. Não haveria nenhuma riqueza acrescentada de forma produtiva. As pessoas simplesmente deixariam de gastar em outras coisas para deixar seu dinheiro nas roletas ou nos caça-níqueis. Isso se chama desvio de recursos e gera menos emprego ou desemprego noutros setores. Cria de um lado, destrói do outro. O bem-estar das famílias dos jogadores diminuiria, junto com seu consumo e seus investimentos em educação e saúde ou em poupança para casa própria, automóvel ou outros bens de consumo duráveis. Em suma, perderiam as famílias e perderia o país como um todo.

Guerra do jogo
Em terceiro lugar, mesmo perdendo o país, alguns políticos poderão argumentar: “Meu município ou meu Estado sairão ganhando”. Doce ilusão. O projeto de lei em trâmite no Senado prevê no mínimo um cassino por Estado, só para começar. Em breve teríamos uma centena. Seria gastar tinta à toa controlar, pela lei, sua proliferação. Sempre que houvesse necessidade de aprovar essa ou aquela medida do Executivo, qualquer governo cederia na autorização de um cassino a mais a um grupo de parlamentares, interessados em que sua região não ficasse para trás na exploração de uma atividade tão moderninha e “benéfica”.

Sabemos também que governadores e prefeitos embarcariam numa verdadeira guerra do jogo, semelhante à peleja feroz e irracional que já existe no caso das indústrias. Para isso ofereceriam subsídios fiscais abundantes, à custa, naturalmente, da viúva. Mais ainda, a rede de cassinos implicaria aumento de gastos públicos com segurança preventiva e repressiva, pois estimularia o crime e abrigaria redes de narcotráfico, lavagem de dinheiro e prostituição. Implicaria também despesas públicas na área social, devido à necessidade de assistência aos jogadores compulsivos.

Assim, a nova atividade trará custos. Se quisermos avaliar o efeito econômico da operação de um cassino num determinado Estado, teremos de subtrair, do dinheiro trazido de fora pelos visitantes que é apropriado pelos moradores, o dinheiro que estes perdem no jogo, além dos citados custos. Se essas contas fossem feitas, minguaria rapidamente o atual entusiasmo pelos cassinos como instrumento de desenvolvimento regional.

O exemplo norte-americano
A tradicional macaquice das elites brasileiras sempre as tornou permeáveis a exemplos que vêm do Norte, mais especialmente dos Estados Unidos. No entanto, acredite o leitor, a experiência norte-americana desaconselha a implantação de cassinos no Brasil e confirma meus argumentos. Vejamos alguns exemplos.

1. Vício – Estudos feitos pelo economista Ricardo Gazel, ex-professor da Universidade de Nevada, hoje funcionário do Federal Reserve System, mostram que, no Estado de Wisconsin, a dívida média dos jogadores compulsivos é de US$ 35 mil. Nesse mesmo Estado, 60% dos jogadores compulsivos já pensaram em suicídio por causa do jogo, sendo que 20% deles efetivamente tentaram se matar. De fato, cada jogador viciado de Wisconsin custa entre US$ 10 mil e US$ 30 mil por ano, dependendo do caso, em tratamentos, internações e gastos com os sistemas judiciário e penitenciário. Já os custos em termos de produtividade e perda de horas de trabalho em Wisconsin somam quase US$ 3 mil anuais para cada um desses jogadores compulsivos. No total, em 1995, o Estado despendeu quase US$ 120 milhões por causa deles.

Na badalada Las Vegas, cidade que concentra uma das maiores concentrações de cassinos por quilômetro quadrado no mundo, 8,5% da população adulta (70 mil pessoas) tem algum problema ligado ao jogo, segundo outros citados por Gazel. São pessoas que faltam ao serviço para ir aos cassinos, gastam dinheiro do aluguel no jogo ou cometem algum tipo de fraude para continuar jogando.

Também em Nevada, onde está Las Vegas, há o dobro de casos de suicídio em comparação com o restante do país. Nesse Estado os índices de abuso e negligência com crianças são os maiores do país e em nenhum outro Estado americano há tantas mortes por quilômetro dirigido. Sendo o Estado onde existem mais cassinos, e há mais tempo, nos Estados Unidos, é impossível deixar de fazer uma correlação entre esse fato e aquelas mazelas.

Que os problemas sociais recrudescem com a proliferação dos cassinos, não há dúvida. Um estudo feito em Iowa, em 1995, mostrou que 5,4% da população do Estado tinha, naquele ano, algum problema mais sério com o jogo, contra apenas 1,7% da população antes da abertura dos barcos-cassino na região.

Problema nacional
Aliás, em New Jersey, um serviço público telefônico de atendimento recebeu, em 1996, 26 mil chamadas de jogadores desesperados por dívidas que passavam de US$ 31 mil.

Para os prefeitos e governadores que não querem ouvir falar de vício, mas estão sedentos por taxas e impostos a serem arrecadados com os cassinos, é bom prestar atenção nesses fatos: atrás das dívidas dos jogadores, vêm a perda de produtividade, as tentativas de desfalques e a inadimplência para o fisco. Um estudo feito em 1990 em Maryland estimou que tais fatores provocaram prejuízos de US$ 1,5 bilhão no Estado, devido ao jogo, segundo a revista “The Economist”. E o que as pessoas deixam de pagar antes de qualquer outra coisa? Adivinhou quem pensou em impostos.

De fato, nos Estados Unidos o jogo virou um problema nacional. Segundo a Associação Americana de Psiquiatria, os jogadores compulsivos já somam 3% da população atual, ou 8,1 milhões de pessoas. Diante da macaquice e nesta fase de abertura econômica ampla, geral e irrestrita, que tal incluirmos mais esse item na nossa pauta de importações?

2. Criminalidade – Em Wisconsin, segundo estudo de Gazel e dos professores Dan Rickman (Oklahoma University) e William Thompson (University of Nevada), o número de crimes cresceu 6,7% após a abertura dos cassinos. Somando-se os casos de crimes que decorrem indiretamente do jogo _como maus tratos e agressões feitas por viciados_, essa proporção cresceu para quase 9%. Segundo o Instituto Americano de Seguros, nos Estados Unidos 40% dos crimes de “colarinho branco” têm raízes no jogo.

Por que aumenta o crime? Porque o volume de dinheiro que circula em torno do jogo é suficientemente grande para atrair o dinheiro sujo, proveniente do tráfico de drogas e outras atividades ilegais.

3. Desvio de renda e canibalização de atividades – Em Atlantic City, metade dos restaurantes da cidade fechou as portas dois anos depois da abertura dos cassinos na cidade, no final dos anos 70. Eles desapareceram porque os cassinos subsidiam a alimentação dos jogadores, para que eles permaneçam mais tempo na casa.

Outro exemplo: em Illinois, em 1995, a operação dos cassinos provocou perdas de US$ 1,9 bilhão para o comércio local. Tais prejuízos decorreram do dinheiro torrado no jogo, que deixou de ser gasto de outra forma; ou da canibalização, pelos cassinos, do comércio de comida, bebidas e outros produtos vendidos pelo varejo.

Quem vai a Iowa jogar?
No mesmo Estado, todos os efeitos “positivos” trazidos pelos cassinos (incluindo-se pagamento de salários aos funcionários e as compras na região) totalizaram quase US$ 1,8 bilhão no ano de 1995. Fazendo um balanço do que o Estado ganhou e do que perdeu após a abertura dos cassinos, constatou-se um prejuízo de US$ 125 milhões, apenas no que diz respeito aos aspectos econômicos do jogo.

Quanto à possível atração de turistas, tão propalada pelos defensores do jogo, cabe uma pergunta: você conhece alguém, uma só pessoa, que foi para Iowa, Illinois, Wisconsin ou Dakota do Sul apenas porque lá foi autorizada a abertura de cassinos?

O fato é que, quando são somados os impactos sociais do funcionamento dos cassinos sobre a comunidade, o resultado líquido é frequentemente negativo. Como se pode ver na tabela, o Estado de Illinois perdeu, em 1995, quase US$ 287 milhões, no balanço dos benefícios e malefícios causados pelos cassinos.

Vejam bem: esse resultado negativo não leva em consideração os gastos dos governos locais e estaduais em decorrência da instalação dos cassinos, como funcionários para fiscalização e serviços de controle, policiais adicionais contratados etc.

Como se constata, a proliferação dos cassinos tem sido um mau negócio para a sociedade norte-americana. No máximo, representou uma conveniência apenas para os empresários do setor e para o crime organizado que desfruta da rede de cassinos. No Brasil, liberar o jogo somente criará mais problemas. Será que já não bastam os atuais? Para quê, a essa altura, o país deve procurar mais sarna para se coçar?

Fontes utilizadas:
– “The Economic Impacts of Casino Gambling at State and Local Levels”, por Ricardo Gazel, in Annals, AAPSS, 556, março de 1998;
– “Casino Gambling Gaining Ground Across America”, por William N. Thompson and Ricardo Gazel, inédito;
– “Social and Legal Costs of Compulsive Gambling”, de William N. Thompson, Ricardo Gazel e Dan Rickman, in “Gaming Law Review”, V.1, nº 1, 1997;
– “The Economic Impacts of Native American Gaming in Wisconsin”, por Ricardo Gazel, William N. Thompson e Dan Rickman, in “Gaming Research & Review Journal”, V. 2, nº 2, 1995;
– “Is Casino Gambling an Efficient Regional Economic Development Tool? The Evidence from Wisconsin”, por Ricardo Gazel, Dan Rickman e William N. Thompson, inédito;
– “Casino Gambling and Crime: A Panel Study of Wisconsin Counties”, por Ricardo Gazel, Dan Rickman e William N. Thompson, inédito;
_ “The Economist”, edições de 13/12/97, 06/12/97 e 26/01/97.

*José Serra, 56, senador pelo PSDB de São Paulo, toma posse nesta semana como ministro da Saúde. Foi deputado federal pelo PMDB-SP (1986-88) e pelo PSDB-SP (1988-94) e ministro do Planejamento (governo Fernando Henrique Cardoso)