EMENDA ERRADA

Folha de S.Paulo
21 de junho de 1988

Passou desapercebido pelos observadores da Constituinte um conflito que paralisou a sessão de quinta-feira última e que, se não for resolvido, poderá dificultar o rápido avanço dos trabalhos nesta semana. Tal conflito envolveu basicamente setores da bancada do Nordeste, mobilizados em torno a uma emenda às Disposições Transitórias sobre gastos públicos.

O texto (artigo 14) que a citada emenda pretende modificar, ratifica um dispositivo já aprovado no texto permanente (parágrafo 5º, art. 194), segundo o qual os critérios que orientarão os orçamentos governamentais levarão em conta a distribuição espacial de população, como forma de diminuir as desigualdades regionais. Esse dispositivo foi incluído desde a Comissão Temática, por idéia e pressão dos parlamentares ligados ao Nordeste. Também foi ardorosamente reivindicada a inclusão, nas Disposições Transitórias, de um artigo que assegurasse o cumprimento do disposto no texto permanente.
Isso foi feito, após intensas discussões e negociações, onde sobressaiu a iniciativa do senador Virgilio Távora. De acordo com o artigo, o referido cumprimento “… será feito de forma progressiva no prazo de até 10 anos, com base no crescimento real da despesa de custeio e de investimentos, distribuindo-se entre as regiões macroeconômicas de forma proporcional à população, a partir da situação verificada no biênio 1986-87”. Teve-se a cautela de se excepcionar determinadas despesas, para evitar ou atenuar virtuais irracionalidades que pudessem surgir.

Apesar do acordo feito à época, apresentou-se agora emenda que suprime a expressão “crescimento real”. Que problema ocorreria?

Como entre os gastos a serem redistribuídos figuram os de custeio (destinados a manter atividades em funcionamento) e como os investimento representam uma proporção menor da despesa total, pode-se concluir que a obediência ao dispositivo que exclui o “aumento real” acabaria levando ou à liquidação de atividades federais nas regiões mais desenvolvidas do país (fábricas, hospitais, escritórios de empresas, por exemplo) ou a seu transplante para regiões mais povoadas e menos desenvolvidas.
Isso configuraria uma espécie de modelo “cambodjano”, que estaria acima de qualquer viabilidade política, econômica ou social, além de agravar de forma destrutiva os conflitos de natureza regional.

Evidentemente, acolher-se a emenda em questão com a predisposição de não levá-la a sério, representaria uma irresponsabilidade, não apenas com a Constituinte, mas inclusive com o próprio Nordeste, face às falsas expectativas que despertaria.

De fato, a intenção da emenda não corresponde ao resultado que ela produziria. Por isso é necessário renegociar o assunto, encontrando uma alternativa mais realista e apropriada a um texto constitucional.

Diga-se de passagem que o critério do “aumento real da despesa”, não é draconiano. Basta lembrar que se o Brasil retomar a taxa de crescimento do após guerra (até 1980) de 7% ao ano, a despesa pública federal, caso acompanhe o PIB, simplesmente duplicará em 10 anos, exercendo um poderosíssimo efeito regional redistributivo, obedecendo os critérios do artigo 14 em sua forma atual.

Por último, é preciso lembrar que face às mudanças tributárias da nova Constituição os ganhos da macro-região Norte-Nordeste equivalem de duas a três vezes os da região Sul-Sudeste. Isto deveu-se, aliás, ao grande peso e influência dos constituintes do Norte-Nordeste na Subcomissão Tributária e da Comissão Temática. Afirmar o contrário equivale não apenas a desqualificar seu trabalho como a rejeitar irrefutáveis evidências númericas.

José Serra