FREUD E ZPEs

Folha de S.Paulo
2 de agosto de 1988

Entre as indagações que muitos brasileiros se fazem uns aos outros, há uma especialmente angustiante: como sobreviverá o país diante desta crise econômica nos 19,5 meses que restam ao governo Sarney? Indagação que de perpassar inclusive os espíritos de empresários que apoiaram e se mobilizaram para que o mandato do atual presidente fosse de cinco e não de quatro anos.
A crise econômica atual – não obstante sua gravidade – não é intransponível. Os ministros da área econômica – independentemente das divergências que se possa ter com eles – são homens sérios, técnicos competentes. O que parece ser intransponível é a falta de legitimidade, de autoridade, de eficácia e de visão nacional do governo para enfrentar a crise.

Pior, face a essa incapacidade, que se projeta de forma dramática há inflação de 1% ao dia útil, o governo parece inclinar-se para uma política de final de mandato – longo final – em que muitas decisões, mais do que tentativas bem-intencionadas de controlar a situação, estendem a crise econômica para a esfera político-institucional ou atendem a objetivos de natureza fortemente, patrimonialista, levando-os ao paroxismo, o que já é lugar-comum entre os setores mais atrasados da vida política brasileira.

Quanto ao primeiro caso, o exemplo, imediato pode ser encontrado no propósito de o Executivo transferir à Constituinte a culpa, que ela não tem pela crise econômica. Por quê? Freud certamente poderia explicar. O exemplo imediato são as reiteradas ações de envolvimento, mesmo simbólico, das forças armadas em assuntos que não lhes dizem respeito.

Em relação ao segundo caso, o exemplo gritante é da criação por decreto-lei das Zonas de Processamento de Exportações, contrariando frontalmente a opinião do Legislativo que, em documento assinado por folgada maioria repudiou a idéia de utilização do decreto-lei para implementar medidas desse tipo. Na Constituinte, uma proposta de criar ZPEs por lei foi recusada também por grande maioria. Aliás, opõem-se à ZPE todos os economistas brasileiros mais preparados (de Simonsen a Celso Furtado e Ignácio Rangel) editoriais da Folha e do “O Estado de S.Paulo”, os empresários da Confederação Nacional da Indústria, da Fiesp e da Associação dos Exportadores, técnicos governamentais sérios e o próprio ministro da Fazenda, que objetou até onde pôde a decisão presidencial.

Não é só isso. O governo perdeu o debate havido, não provando jamais que as ZPEs, que significam a instalação em território nacional de zonas livres de exportação e importação de mercadorias e capitais, trariam os benefícios alardeados em matéria de tecnologia, divisas e atenuação de desequilíbrios regionais. Nem foi capaz de refutar as críticas, fundadas na análise econômica e na experiência internacional, de que os pobres resultados de ZPEs seriam muito mais do que compensados pelos prejuízos à indústria doméstica e ao balanço de pagamentos, para não falar da prosperidade da economia paralela do contrabando e do mercado negro.

Por último, o decreto-lei sobre as ZPEs é também inconstitucional, pois não tem urgência, não é relevante e implica gasto público, não obedecendo portanto a restrições da atual Constituição para os decretos leis.

Por trás da medida há também componentes psicológicos: incapaz de implantar uma política industrial de verdade, que o país não tem há dez anos, o governo cria ZPEs para mostrar que está fazendo algo, mesmo que seja dar um tiro no pé do nosso desenvolvimento industrial. E, também, atiça, como de costume e da maneira artificial, discórdias regionais. Para encobrir sua própria incompetência, nada como insinuar-se resgatador do Antonio Conselheiro e do Padre Cícero… Deus nos proteja.

José Serra