Gasto sob controle

Folha de S.Paulo
26 de abril de 1988

Deputado: “Senhor ministro, minha emenda sobre a construção da ponte do rio Garatá foi aprovada e incluída no orçamento. Se há verba orçamentária, por que a ponte não está sendo feita?”

Santiago Dantas (ministro da Fazenda): “É verdade que há verba, senhor deputado. Mas não há dinheiro”.

Este diálogo, de 1963 reflete um dos aspectos essenciais da relação entre o Congresso e o Poder Executivo sob as normas da Constituição de 1946. Esta Carta não fazia qualquer restrição a emendas apresentadas ao orçamento pelos parlamentares, criando despesas. Embora o Executivo pudesse exercer seu poder de veto, é evidente que, face a necessidade de negociar com o Legislativo a aprovação de lei orçamentária, um volume enorme de emendas terminava sendo acolhido, ultrapassando folgadamente as disponibilidades efetivas de receitas e pulverizando, sem qualquer planejamento mais coerente, a destinação do gasto governamental. O resultado prático era a retenção de certas despesas pelo ministro da Fazenda, facilitando a manipulação do Executivo sobre o Legislativo, mediante a barganha em torno da liberação desta ou daquela verba.

Já a Constituição autoritária de 1967, ratificada pela Constituição de 1969 (atual), vedou na prática a apresentação de qualquer emenda orçamentária pelos parlamentares. Acrescente-se a isso a criação de figura do decreto-lei (inalterável pelo Legislativo e passível de ser aprovado por decurso de prazo), chegar-se-á à realidade de hoje, na qual o Congresso não tem qualquer vez em matéria orçamentária.

O capítulo sobre orçamento e finanças públicas do novo texto constitucional, votado na semana passada, fugiu a ambos os extremos apontados. Permite aos parlamentares fazerem emendas ao orçamento, durante sua apreciação, mas somente em relação às despesas de investimentos (e gastos delas decorrentes) e sempre que indiquem, além disso, os recursos necessários.
De fato, o novo capítulo aprovado representa um dos maiores avanços já feitos pelo plenário da Constituinte em pelo menos duas direções: 1) Ampliar e reforçar o controle da sociedade sobre o gasto público; 2) Inibir a ampliação descontrolada do déficit público.

É interessante observar que o conteúdo desse capítulo (bem semelhante ao que foi aprovado na comissão que tratou do tema) foi amplamente apoiado, por setores de todo o espectro político presente no plenário, ficando seus opositores reduzidos a uma pequena e por vezes confusa minoria.

Além da maior iniciativa do Legislativo, amplia-se as discussões sobre o orçamento criando-se a figura da Lei de Diretrizes Orçamentárias, a ser apreciada no primeiro semestre do ano (que fixará os parâmetros e prioridades dos orçamentos a serem apreciados no segundo semestre) e reforçando-se o plano plurianual de investimentos, também apreciado pelo Congresso. Aliás, as emendas dos parlamentares também deverão ser compatíveis com ambas orientações (diretrizes e plurianual).

Afora o orçamento fiscal, que deverá incluir subsídios, incentivos e isenções (“gastos tributários”), o governo deverá ainda apresentar dois outros orçamentos – da “Seguridade Social” (previdência mais saúde e assistência social) e de Investimentos das Empresas Estatais. Por outro lado, proíbe-se o Banco Central de financiar o Tesouro, obriga-se a prever a emissão de títulos governamentais no orçamento, impede-se a cobertura de déficit de estatais sem autorização do Legislativo, proibe-se o endividamento que exceda as despesas de capital (ou seja, para pagar custeio) e veda-se que os gastos com pessoal excedam a 65% das receitas correntes (este percentual está nas disposições transitórias, onde se dá um prazo de cinco anos para que os dois últimos preceitos sejam gradualmente obedecidos).

Críticos responsáveis, mas severos, descrêem que o Legislativo venha a estar técnica, ideológica e politicamente preparado para dar conta de tanta responsabilidade. É possível que tenham razão a curto prazo. Mas qual o caminho, por longo e penoso que seja, para consolidar a democracia e o controle da ação econômica do Estado que exclui, na relação Executivo-Legislativo, a substituição da fisiologia e da manipulação pela responsabilidade?

José Serra