GOVERNABILIDADE EM CRISE

Folha de S.Paulo
6 dezembro de 1988

No bojo do processo de democratização e, principalmente, graças a nova Constituição, o Legislativo não apenas recupera mas adquire um enorme peso dentro da estrutura do poder do país. Basta mencionar, como exemplos, a extinção do decurso de prazo e dos decretos-leis (não contrabalançada pela criação das “medidas provisórias”), a possibilidade de derrubar vetos presidenciais mediante maioria absoluta de seus membros (em lugar de dois terços como hoje), a atribuição de aprovar nomeações de diretores do Banco Central e do procurador-geral da República, bem como de nomear a maioria dos membros dos Tribunais de Contas e a possibilidade de interferir efetivamente nos planos plurianuais e nos orçamentos fiscal, da seguridade social e de investimentos das empresas estatais. Mais ainda, o Congresso exercerá também um poder transitório na elaboração de leis essenciais que decorrem da nova Carta.

A contrapartida dessa realidade é, evidentemente, o enfraquecimento do Executivo, que será maior na medida em que o Congresso possa e venha a melhorar seus conhecimentos e a equipar-se materialmente (incluindo recursos humanos) para exercer suas funções, por exemplo, na área orçamentária.

É importante notar que o enfraquecimento do Executivo federal face ao Legislativo desdobra-se também no debilitamento da União vis-a-vis os governos estaduais e municipais, não tanto e apenas graças à nova Constituição, mas principalmente pela influência direta desses governos (de forma mais direta, os estaduais) sobre os parlamentares, cujas possibilidades de reeleição, preocupação suprema de sua maioria, dependem fortemente das forças políticas estaduais e municipais. Ou seja, o enfraquecimento do Executivo tem sua correspondência na perda de capacidade para definir e implementar políticas no âmbito da Federação.

Nada a opor, evidentemente, à dimensão democratizante da descentralização. Tudo a preocupar, porém, em relação ao risco de saltar-se da descentralização necessária à impossibilidade de executar políticas que obrigatoriamente devem ser nacionais e unificadas, como (no campo econômico) nas áreas de câmbio, moeda, dívida e comércio exterior, só para citar exemplos.
Diante desse quadro, um dos principais vícios do sistema presidencialista brasileiro torna-se ainda mais grave. Refiro-me à prática da troca de favores, ao clientelismo, entre o poder Executivo e os parlamentares individualmente, como forma de a Presidência da República manter ou conter o estreitamento do seu raio de manobra, face aos maiores poderes do Congresso.

No caso peculiar do atual presidente, há ainda o recurso reiterado a um outro expediente, perigoso: atiçar os conflitos regionais. O esquema é tão simples como condenável: o Executivo procura obter maioria ocasionais seja propondo medidas discriminatórias contra algumas regiões (como no caso da rolagem da dívida dos Estados), seja procurando desqualificar críticas legítimas a determinados programas de investimento, mediante o argumento de que tais críticas obedecem a interesses regionailistas. Este é o caso típico do processo que envolve a construção da ferrovia Norte-Sul, sem qualquer prioridade, e a criação das Zonas de Processamento de Exportações – ZPEs, completamente fora de hora e lugar.

Os problemas acima expostos apontam claramente para perdas adidicionais de condições de governabilidade do país, além dos perigosos índices já atingidos. A prescrição, para nós, é clara: implantar o regime parlamentarista (a partir de 1990), não como panacéia, evidentemente, mas como alternativa para ampliar as chances de recuperação de governabilidade do país em condiçoes de democracia, desenvolvimento e justiça social.

José Serra