IMPOSTOS E PARADOXOS (*)

Folha de S.Paulo
19 de abril de 1988

Mal começou a ser votado o capítulo referente ao sistema tributário da nova Constituição, o governo federal apressou-se em divulgar que as tranferências de receita da União para os Estados e municípios tornariam as finanças federais inviáveis ou, então, que as regiões Norte-Nordeste sairiam prejudicadas a médio e longo prazo. Sugeriu, de fato, que esta seria mais uma “irresponsabilidade” da Constituinte. Tal atitude suscita diversos comentários, que tentarei resumir aqui.

1. As “perdas” da União são menores que os 23% apresentados pelo governo. De fato, tomando um ano-base mais adequado (a Receita Federal baseou-se em 1988, fazendo inúmeras hipóteses sobre o que acontecera neste ano) e incluindo nas receitas federais o Finsocial, o Pin-Proterra, o Salário Educação etc., o acréscimo das transferências seria de 16%, feito em cinco anos, embora em maior peso em 1989.

2. A pressão pela maior descentralização de recursos para Estados e municípios é fortíssima dentro da Constituinte, sendo defendida especialmente pela bancada no Norte e do Nordeste. Apesar de o governo dizer que o Norte-Nordeste sairia prejudicado, nem os números nem os próprios parlamentares dessa região, que participaram ativamente da elaboração do projeto, confirmam essa tese.

3. Desde abril do ano passado, quando começou a tomar forma o novo sistema tributário e as transferências federais que implicaria, o governo federal manteve-se, de fato, omisso, a menos de declarações à imprensa. Tal omissão, aliás, estendeu-se também ao problema da geração de despesas públicas e das transferências de encargos na nova Constituição. Não é surpreendente? Sem exagero, a esses assuntos não foi dedicado um centésimo de tempo que o governo empregou na questão da duração de mandato.

4. O projeto tributário que ora está sendo apreciado pelo plenário da Constituinte foi apresentado pelo “Centrão” (que acolheu na sua quase totalidade o que veio da Sistematização). Como se sabe, o Centrão é a principal base de sustentação das teses do governo na Constituinte. Não é um paradoxo?

5. A única proposta apresentada pelo governo para diminuir as transferências, através do líder do PFL, perseguiu um alvo errado: eliminar a fusão de cinco impostos federais (tributos “em cascata” e de arrecadação pequena) com o ICM. No entanto, esta é a medida mais racional e modernizante do capítulo tributário – altamente consensual entre os especialistas em tributação e apoiada inclusive por grandes órgãos de imprensa – e é responsável por somente um quinto das “perdas” da União. Não é outro paradoxo?

6. Não estou minimizando, e nunca o fiz, o peso das transferências a serem feitas. Terá que haver descentralização de funções e encargos, a fim de que não se reproduza, simetricamente, com sinal trocado, o desequilibrio gerado a partir de meados da década dos 60. Há alguma garantia de que tal descentralização seja feita? Isto dependerá de desconcentração de poder, do descortino do governo federal, do espírito público de governadores e prefeitos e da responsabilidade do Congresso. Trata-se de um grande desafio, que não é, porém, o único nem o maior que o processo democrático em nosso país deverá enfrentar e vencer.

José Serra