INTENÇÃO E FATO

Folha de S.Paulo
2 de fevereiro de 1988

Não deixa de surpreender a pouca consciência que existe, mesmo nas áreas mais informadas da opinião pública, a respeito de duas circunstâncias cruciais que aprisionam e com frequência desvirtuam os resultados de políticas econômico-sociais bem intencionadas. Refiro-me basicamente ao chamado “mercado informal” de mão-de-obra – composto por trabalhadores de baixa renda – e aos efeitos distributivos socialmente perversos dos impostos indiretos.

No Brasil, algo em torno a 27 milhões de trabalhadores, somente, têm carteira assinada. Os outros representam um número pelo menos equivalente, podendo ser considerados como pertencentes ao mercado informal – ou seja, estão fora da Previdência, do FGTS, etc. Não são atingidos pelos chamados direitos trabalhistas.

Essa situação se produz em virtude do elevado excedente estrutural e da fraca organização da mão-de-obra, pelo atraso produtivo de uma ampla faixa da economia e face ao ímpeto de muitas pequenas e médias empresas para reduzir os custos indiretos de sua força de trabalho – que acrescentam perto de 60% aos custos dos salários pagos.

Muitas das conquistas trabalhistas acabam envolvendo somente os trabalhadores do setor formal e podem, em alguns casos, forçar a ampliação das áreas informais, engrossadas por desempregados que reencontram trabalho ou jovens que começam a trabalhar pela primeira vez. É evidente que isto não deve invalidar ou esmorecer a luta para obtenção ou ampliação daquelas conquistas, mas é um elemento que não pode ser sistematicamente ignorado, como ocorre hoje, na grande maioria das análises e propostas feitas.

Aliás, a heterogeneidade do mercado de trabalho é também fortíssima dentro do próprio setor formal. Por exemplo, é completamente diferente a situação de rotatividade entre as empresas de mais de 500 empregados e as de menos de 50 empregados ou entre as empresas montadoras de veículos e as de construção civil.

Quanto aos impostos indiretos, e incluamos aqui as contribuições sociais, a realidade é bem simples. Tributos como ICM ou IPI, ou contribuições de empregadores à Previdência, ao FGTS, ao PIS-PASEP, etc., são repassadas aos preços, especialmente pelas empresas com maior poder de mercado. Isto significa, como é óbvio, que em última instância, quem paga a conta é a coletividade, que consome produtos ou serviços. Mais ainda, como os pobres e os ricos pagam o mesmo tributo (e a mesma contribuição embutido nos preços, o efeito é claramente regressivo, pois em relação aos pobres o peso do tributo é proporcionalmente maior. Uma pesquisa feita em 1975 mostrou que quem ganhava um salário mínimo mensal dispendia cerca de um terço desse montante em impostos e contribuições, apesar de estar isento do Imposto de Renda. E quem ganhava 100 salários mínimos mensais, apesar de sujeito ao Imposto de Renda, pagava 15% de seus rendimentos.

Assim, é importante ter presente que quando se outorga subsídio ao setor privado e um privilégio especial a algum já privilegiado segmento do setor público, isto tem que ser financiado com impostos indiretos e contribuições sociais, que serão pagos, em última instância, por toda a população. Dentro desta, quem sofrerá mais serão os que menos têm, na sua esamagadora maioria pertencentes ao setor informal do mercado de trabalho, que está à margem dos benefícios trabalhistas.

Aliás, foi tendo em mente a análise anterior que, na Constituinte (aqui menciono apenas três exemplos entre muitos):

1) Tenho visto com reserva a idéia de pagar indenizações por despedida sem justa causa baseadas em multas sobre o FGTS. Ora, os trabalhadores menos qualificados, que vivem transitando do mercado informal de trabalho para o mercado formal, e vice-versa, praticamente não têm FGTS. Não obstante, terão que pagar, como consumidores, pelas multas dos outros, pois estas serão transladadas aos preços. (A questão de se usar o FGTS como base para indenização envolve outras precariedades que explicarei noutro artigo).

2) Tenho também me oposto sistematicamente a dispositivos que impliquem aumentos de despesas, amarrando-as já na Constituição, sem que fique óbvia sua rigorosa prioridade e sua forma de financiamento (um exemplo: as despesas que decorrem da criação de novos Estados).

3) Tenho apoiado a criação do sistema de “Seguridade Social” (apesar do neologismo de gosto discutível) na medida em que supõe a universalização do atendimento à saúde e de outros benefícios (exclusive a aposentadoria, que sempre deve estar vinculada aos que contribuíram), pois dois terços dos recursos desse sistema proviriam de toda a população, que consome e paga as contribuições embutidas nos preços.

José Serra