O BEM E O MAL

Folha de S.Paulo
5 de julho de 1988

“As pessoas não sabem o mal que nos fazem com o bem que nos querem fazer”

A reflexão de Almada Negreiros ocorreu-me de forma reiterada ao longo da votação das Disposições Transitórias da Constituinte, especialmente nos últimos dias. A motivação principal esteve na aprovação da anisitia de crédito, cujo custo de dois bilhões de dólares será pago não por toda a sociedade, mas exatamente pelos setores (majoritários) da população que menos condições possuem para proteger-se da inflação e do aumento de impostos.

Muitos dos que votaram a favor, bem intencionados (e até incomodados, por andarem a reboque da UDR), pensam que atingiram os banqueiros privados, mas estão equivocados. Como já se demonstrou, somente 15% do referido custo recairá sobre instituições financeiras não oficiais. O resto fica por conta dos bancos governamentais e do Tesouro.

Chegam a argumentar, também, que o custo mencionado pouco representa face a desperdícios ou favores creditícios realizados pelo governo. Este é, obviamente, um argumento frágil, até pela lógica de almanaque de farmácia: como pode um mal justificar outro?

A Constituinte acabou aprovando também um “trem-da-alegria” que dá estabilidade aos cinco anos para funcionários não concursados da administração governamental direta e das autarquias. Isto com o apoio de alguns setores da própria esquerda, envolvidos pela febre corporativista e populista. Aliás, foram esses mesmos setores que impediram retirar do “trem” as universidades, de modo que, quando for promulgada a Constituição, professores sem concurso ganharão estabilidade, comprometendo-se gravemente a carreira docente, que pelo menos em universidades como a USP ou a UNICAMP é levada mais a sério.

Surpresa? Infelizmente, não. Áreas consideradas progressistas somaram-se aos grupos mais fisiológicos (estes ligados ao governo) em várias outras votações, como por exemplo, contra a única emenda que procuraria fixar um procedimento racional para a descentralização de encargos e funções (União para Estados e municípios e Estados para municípios). No caso, combinou-se corporativismo com mentalidade centralizadora e populista (descentralizar recursos sem redistribuir funções). O resultado não será o bloqueio à descentralização. Ela já está sendo e será feita, só que de forma arbitrária, não negociada, desorganizada.

Outro exemplo? Ou bloqueio, este sim, à possibilidade de uma reforma administrativa mais séria, que implicasse remanejamento de funções e locações de pessoal na administração pública num prazo de 18 meses. Isto era contemplado no projeto de Sistematização e foi retirado no projeto do Centrão. Sua reinclusão foi, no entanto, impossível, graças a uma perfeita aliança entre um setor de esquerda e os grupos mais fisiológicos.

O novo texto constitucional contém enormes avanços na fixação das regras e das instituiões do jogo democrático no Brasil. Isto é inquestionável. A contrapartida dessa virtude, infelizmente, é sua dilaceração por concepções corporativistas, cartorialistas e populistas, que desconhecem prioridades e para as quais dois mais dois de despesas são iguais a três de receitas. São concepções, em essência, reacionárias e opostas ao interesse público, especialmente dos setores mais carentes, em cujo nome quase todos falam mas de cujas necessidades reais quase todos passam por cima. Concepções que revelam o despreparo e o arcaísmo de forças que, em tese, deveriam construir um país moderno, menos desigual e mais desenvolvido.

José Serra