OS QUATRO VÍRUS

Folha de S.Paulo
12 de julho de 1988

Em entrevista à “Veja”, Guillermo O’Donnell fez uma advertência aos que descrendo da possibilidade de um golpe militar, minimizam as implicações negativas dos tropeços da economia e da política brasileira nos últimos anos:
“O golpe militar, com os tanques nas ruas, não é a única maneira de se acabar com a democracia. Ela também pode definir progressivamente, ter uma morte lenta… O país talvez tenha de temer mais a morte lenta da democracia do que um golpe no estilo clássico.”

Como O’Donnell demonstra, na entrevista e em artigos que tem escrito, esse processo já está em andamento. Os fatores e explicativos são inúmeros e, por certo, inter-relacionados. Mas esperanças existem, entre outras razões, pela possibilidade da constituição das forças partidárias novas que permitam “se elaborar um forma de fazer política representativa, capaz de colocar o país no rumo da modernidade, das grandes mudanças que estão correndo no mundo”.

O PSDB tem, sem dúvida, essa chance, mas tem que se proteger contra pelo menos quatro espécies de vírus, que já infeccionam os outros partidos (de “esquerda” e de “direita”): o populismo, o corporativismo, o patrimonialismo e o autarquismo. A seriedade e a democracia interna já são atributos que acompanharam seu nascimento mas não o imunizam necessariamente em relação ao vírus mencionados.

O populismo, verdadeira doença infantil da Nova República, tem como características essenciais sua incapacidade para: 1) preocupar-se com o lado “real” da economia – isto é, que todo gasto público, subsídio creditício ou fiscal, distribuição de renda exigem para não ter efeitos nulos ou até negativos, que a produção aumente, e/ou que alguém pague; 2) definir prioridades, especialmente para os setores com menos capacidade de pressão, isto é, os mais carentes.
O vírus do populismo prospera sempre no caldo de cultura de visão paternalista do Estado, ou seja, que o Estado sempre pode e a ele sempre cabe resolver todas as questões econômicas e sociais consideradas pendentes.

O corporativismo, que tanto dilacera a nova Constituição, se traduz fundamentalmente na defesa cega dos interesses de um setor específico (área principal), empresarial, ou, mesmo, região). No discurso, as aspirações defendidas são, reiteiradas e às vezes ingenuamente, identificadas com os interesses do conjunto da sociedade. Na prática, passam por cima do resto da sociedade, isto é, de quem paga pelas conquistas obtidas ou sofre suas consequências.

O patrimonialismo é o vírus que mais sucesso tem tido junto ao organismo do PMDB, especialmente em algumas administrações estaduais a confusão entre interesse o privado e o público, a utilização do setor público para servir o interesse privado dos que o administram.

Por último, o autarquismo liga-se a uma reação compreensível a idéias ou políticas econômicas calcadas num liberalismo antigo (que vitimou economias como a Argentina, na fase Martínez de Hoz) mas que aterriza em concepções, na prática, avessas ao progresso tecnológico, à eficiência e à competitividade. Também na prática (não nas intenções) revela-se incompatível com a formulação de políticas nacionais de desenvolvimento consistentes e eficazes, como, por exemplo, as que prevaleceram nos países do Sudeste Asiático. Estes países, aliás têm sido capazes de evitar tanto o autarquismo quanto o “aberturismo” irresponsável.

Infelizmente, não há, no mercado, vacina contra esses quatro vírus. A imunidade só pode vir do reconhecimento permanente da existência desses adversários, de sua morfologia, hábitos, fraquezas e bases de subsistência, bem como da paciência, obstinação e coragem em inibi-los.

José Serra