PROPORCIONAL E DISTRITAL

Folha de S.Paulo
23 de agosto de 1988

Um dos aspectos mais importantes, menos debatidos e mais vulneráveis da nova Carta Constitucional refere-se ao regime eleitoral, consagrado no artigo 46. A votação de primeiro turno fixou o sistema proporcional, onde os deputados (ou vereadores) disputam o voto entre os eleitores de todo o seu Estado (ou município).

Esse sistema se contrapõe a outro, chamado distrital, no qual o parlamentar é eleito por uma região dentro do Estado ou do município. Esta forma seria muito mais adequada para a representatividade do sistema democrático brasileiro. Creio, mesmo, que poderia ser combinada com a forma proporcional, num esquema misto, onde metade dos parlamentares seria eleita por toda a população do Estado (ou município) e metade nos distritos.

Argumenta-se, equivocadamente, que o voto distrital aumentaria a influência do poder econômico nas eleições e que destruiria os pequenos partidos. No primeiro caso, imagina-se que seria mais fácil a formação de “currais” eleitorais, onde um candidato com elevados recursos perpetuaria seu domínio fisiológico junto a um colégio mais limitado de eleitores. No segundo caso, acredita-se que os votos dos pequenos partidos, pulverizados nos distritos, não permitiriam, dentro do sistema distrital, eleger um só deputado ou vereador, fortalecendo assim, a bipartidarização do processo político.

Na verdade, o sistema misto resolveria a segunda dificuldade. E não seria demais limitar a multiplicação de minipartidos, que tendem a se transformar em legenda de aluguel; sobreviveriam apenas aqueles que expressem forças políticas reais. Além disso, a influência do poder econômico dificilmente seria menor no sistema distrital do que já é no proporcional. Avalie-se o esforço material necessário para disputar o voto em 570 municípios junto aos 15 milhões de eleitores de São Paulo…
Aqui encontramos uma das virtudes do voto distrital, pois mediante a disputa de votos dentro de um colégio, digamos, de 150 mil eleitores, os candidatos passariam a ter um acesso mais direto à população, o que facilitaria o trabalho eleitoral dos que dispõem de menores recursos.

Por outro lado, fatalmente aumentaria o controle da população sobre o parlamentar eleito. A cada eleição, sua atuação seria dissecada pelos seus adversários e julgada pela população. Hoje, numa cidade como São Paulo, o vereador praticamente não responde a nenhum grupo mais delimitado de eleitores. No Estado, parlamentares inoperantes podem se reeleger sucessivamente mudando a campanha de cidades, em cada eleição, estabelecendo uma espécie de rotatividade do cultivo eleitoral.

O sistema misto poderia também evitar o problema (supervalorizado) da “despolitização” que o voto distrital, em tese, acarretaria. E tornaria mais simples a realização de eleições, especialmente as que seriam suscetíveis de serem feitas num regime parlamentarista (que o país terá chance de escolher em 1993), dentro do qual se contempla a possibilidade de dissolução do Parlamento e convocação de novas eleições num prazo de algumas semanas.

Finalmente, o voto distrital seria imprescindível para combater o problema da sub-representação política das aglomerações urbanas maiores. Hoje, uma região como a da grande São Paulo, com mais da metade da população do Estado, tem menos de um quinto dos parlamentares estaduais e federais. Isto porque, sendo mais “aberta” cultural e geograficamente, seus votos são mais pulverizados, ou seja, dividem-se por um número maior de candidatos. Outros fatores, de natureza sociológica, atuam neste mesmo sentido, pois a tornam, na sua periferia, mais vulnerável à picaretagem eleitoral.

Seria pedir muito à Constituinte que fixasse o sistema distrital misto na Nova Carta. Há o peso contrário dos pequenos partidos e o interesse de muitos parlamentares, que, eleitos num sistema proporcional temem a mudança. Seria razoável, no entanto, que se deixasse a questão aberta para a futura lei eleitoral, não trancando a possibilidade de encontrarmos um sistema eleitoral melhor que o atual.

José Serra