TRANSFERÊNCIA DE CULPA

Folha de S.Paulo
26 de julho de 1988

Em princípio, é correta a preocupação de qualquer cidadão brasileiro com as despesas públicas sem financiamento adequado que a nova Constituição possa vir a criar. Valem a preocupação, o debate e as propostas alternativas, mesmo quando provenientes do governo, isto é, do Poder Executivo, embora a responsabilidade direta pela nova Carta caiba ao Legislativo.

Os reparos e as críticas feitas pelo Planalto sobre o tema citado carecem, no entanto, de legitimidade e credibilidade, circunstâncias que enfraquecem sua eficácia. E isto por dois bons motivos. O primeiro tem a ver com uma constatação ululantemente óbvia: a ofensiva do governo é tardia, faz-se na hora da prorrogação do jogo da Constituinte, quando só resta o segundo turno e as emendas têm apenas caráter supressivo ou levemente corretivo. A quase totalidade dos dispositivos que o Executivo considera inconvenientes já estavam presentes na Constituinte há uma ano atrás e não faltou tempo nem possibilidades de mudanças constrututivas nesse longo período. O que faltou, então? Competência? Sem dúvida, em se tratando do governo que conhecemos. Mas não só.

A resposta à pergunta anterior fica mais completa face ao segundo motivo: na verdade uma das principais causas dos problemas de despesas que o governo aponta foi a atuação do próprio governo na Constituinte.

Tal afirmação parecerá surpreendente para alguns, mas é, de fato, bem plausível. Face a sua obsessão cega pelo mandato de cinco anos, o governo sempre evitou atuar de forma definida, responsável e prática nas questões sobre finanças públicas. Por quê? A fim de ganhar apoio ao “um ano mais” para Sarney? Nesse empenho, acabou forjando a coalizão de um setor da Constituinte cuja taxa de populismo e visão clientelística do processo político é bem mais elevada do que a da média do plenário.

Quem acompanhou as discussões da Constituinte sabe disso. “Trens-da-alegria” (estabilidade depois de cinco anos para servidores públicos sem concurso), anistias fiscal e de crédito, vinculações e equiparações salariais. criação de órgãos públicos novos, amarrações orçamentárias descabidas, constitucionalização da inflação (mediante a consagração da correção monetária da Carta Magna), sempre tiveram entre seus patrocinadores ou defensores integrantes da área governista na Constituinte.

O que dizer então de medidas que o governo considera estatizantes ou xenófobas, como a proibição da comercialização privada de sangue e a nacionalização completa da exploração de minérios? Sabe o leitor que o governo praticamente nunca mexeu uma palha para atenuar de modo significativo as transferências tributárias federais a Estados e municípios, apesar de viver reclamando disso? Que a única proposta que apresentou no plenário sobre esse tema procurava eliminar os dispositivos mais modernizantes do capítulo tributário (fusão de cinco imposto federais no ICM), responsáveis por menos de um quinto das perdas da União? Sabe também que as bases governistas votaram contra e ajudaram a derrotar o único dispositivo que tratava da descentralização de encargos da União para Estados e municípios?

Nesse contexto é interessante indagar por que, apesar da pouca legitimidade e da ineficácia prática de suas espinafradas na Constituinte, o governo insiste em fazê-las e, inclusive, as amplia. A resposta é: para desprestigiar a Constituinte aos olhos da opinião pública, procurando transferir-lhe a “culpa” pelo desastroso quadro político econômico atual. Quadro, diga-se de passagem, cuja moldura e conteúdo encontram no Poder Executivo seu principal autor.

José Serra