UFANISMO OU VERGONHA

Folha de S.Paulo
1 de março de 1988

O fato de o Produto Interno Bruto brasileiro ocupar o nono lugar entre o PIB dos países capitalistas, provoca dois sentimentos antagônicos: exalta o espírito verde-amarelo (ou canarinho) de alguns, mas atiça o senso crítico de outros, que parecem acreditar que, como correspondência, deveríamos ser também o nono País em matéria de bem-estar social. Isto não faz sentido, pois o melhor indicador sintético de progresso material não é o PIB isoladamente, mais seus valores divididos pela população do País. Neste caso não estamos tão bem colocados. Ao contrário. Caímos do nono para o quadragésimo nono lugar.
Caberia notar, porém, que em relação às condições básicas de vida, estamos em pior situação do que os países cujo PIB por habitante é próximo ao nosso. Parafraseando (e invertendo) Orwel, poder-se-ia dizer que todos os pobres são iguais, só que alguns menos iguais do que os outros…

Assim, por exemplo, nosso índice de mortalidade infantil é três vezes superior ao do Chile e 40% maior do que o índice do México ou da Colômbia. Entre nós, apenas 21% dos adolescentes (15 a 19 anos) vão à escola secundária, proporção que se eleva a 66% no Chile, 49% da Colômbia e 91% na Coréia do Sul.

O mesmo estudo do Banco Mundial de onde extraímos esses dados revela um fato surpreendente: no Brasil, os gastos em serviços sociais de todos os tipos atinge cerca de 25% do PIB, incluindo despesas, públicas e privadas. É uma proporção alta e comparável ou superior à de outros países “em desenvolvimento”, onde a população vive bem melhor do que a brasileira.
Como se explica isso? Um primeiro fator reside na desigualdade na distribuição de renda, que é mais acentuada no Brasil do que na maioria daqueles países. Mais acentuada e crescente: entre 1960 e 1985, os 25% mais pobres receberam uma renda média sempre inferior ao salário mínimo; a parcela dos 50% mais pobres na renda pessoal total do país não deixou de cair: 17,5% em 1960, 14,2% em 1970, 13,6% em 1980 e 13% em 1985.

Mais a forte desigualdade não explica tudo, pois a renda real de todos os setores sociais cresceu, embora a dos mais pobres em rítmo menor do que a média. Outro fator importante é o gasto social mal feito, quanto ao seu destino e à sua eficiência. Esse gasto não é dirigido aos grupos mais pobres na proporção que seria necessárias; e, dele, uma boa parte é disperdiçada.
As evidências são eloquentes. Por exemplo, 23% do gasto público total em educação é destinado ao ensino superior e apenas 9% para o ensino secundário; e o custo por aluno das universidades oficiais, salvo raras exceções de baixa qualidade, é vinte vezes superior ao aluno dos cursos primário ou secundário.

Na saúde 85% dos recursos públicos vão para a medicina curativa e somente 15% para a preventiva (programas de imunização, controle da malária, assistência médica maternal e a recém-nascidos, etc.), atividade essencial para a saúde da população mais pobre. Aliás, o Brasil tem o maior índice de cesarianas do mundo, pagas em grande medida com dinheiro público. Como é sabido, o sistema previdenciário discrimina os aposentados de menores rendimentos, em benefício de grupos pequenos e melhor aquinhoados. Pelo menos 7 bilhões de dólares estão sendo dados como subsídios, de graça, aos mutuários do Sistema Financeiro Habitacional, indo a grosso para a classe média (8 mil dólares anuais).

A ineficiência não é menos evidente. Ficando só na educação, cabe lembrar que os prédios escolares no Brasil pode escolher 32 milhões de crianças no ensino básico e a demanda é de 30 milhões de vagas; mas, em 1988, 4,5 milhões de crianças (de 7 a 14 anos) não terão acesso à escola. De cada Cz$ 100,00 que o Ministério da Educação manda para o ensino primário do Nordeste, só Cz$ 52,00 chegam às salas de aula. O resto é dissipado no caminho.

Tudo é agravado pela forma de financiamento do gasto social, baseada em impostos (ou contribuições sociais) indiretos e na inflação, castigando, proporcionalmente, mais o poder aquisitivo dos que menos têm.

Por trás da realidade anterior estão fatores como as pressões corporativas, a centralização excessiva, a ausência de controle e a avaliação das despesas, a irregularidade de alguns fluxos de recursos (sujeitos a “convênios”), a falta de diagnósticos claros e de planejamento. Por isso tudo os pobres do Brasil ficam como estão apesar de tanta gente falar, reivindicar e faturar votos em seu nome.

José Serra