Artigo: O futuro não será mais como era

O Estado de S. Paulo, 14 de janeiro de 2016

O presidencialismo é o regime da irresponsabilidade a prazo fixo. O parlamentarismo é o regime da responsabilidade com prazo indeterminado.

(Ulysses Guimarães)

Há três verdades claras sobre a atual situação do Brasil. Em primeiro lugar, vivemos prisioneiros da maior e mais perfeita crise política, econômica e social de que se tem memória. Em segundo lugar, o governo federal carece de preparo e, acima de tudo, credibilidade para enfrentar as dificuldades e encontrar uma saída virtuosa. Por último, a grande maioria da população deseja que esse governo Dilma termine o quanto antes, como condição para que a crise comece a ser enfrentada.

As críticas gerais e pontuais ao desempenho do governo e do petismo, ao lado das investigações, denúncias e punições no âmbito da justiça, têm-se intensificado a cada passo deste mandato presidencial. Seria até enfadonho relatá-las aqui.

Nesse compasso, é impossível prever com um mínimo de segurança onde iremos parar dentro de uns poucos meses, para não falar de anos. A única certeza, hoje, lembrando Paul Valéry, é que “o futuro não será mais como costumava ser”.

De fato, a crise parece se ocupar de nós, imobilizando-nos. Para abrirmos perspectivas de futuro, nós é que temos de nos ocupar da crise: uma ação política com “P” maiúsculo, voltada para o bem comum do país e respaldada pela opinião pública. Como a crise é, além de tudo, moral, a reputação dos políticos e da atividade política tem sido mais instável e comprometida do que as ações da Petrobrás…

Para sairmos desse impasse, uma das frentes indispensáveis de ação será retomar os esforços para mudar o regime político brasileiro. O critério da mudança está inscrito na epígrafe de Ulysses Guimarães sobre a diferença fundamental entre presidencialismo e parlamentarismo.

Segundo opiniões que recolhi no âmbito do Congresso Nacional o clima para deflagrar esse processo é favorável. Como o é, também, na própria sociedade mais informada, a julgar pela decisão da Ordem dos Advogados do Brasil de empreender uma campanha nacional pela mudança do sistema político em direção ao parlamentarismo.

Mas não há hipótese de o Congresso aprovar uma emenda constitucional desse teor sem um apoio claro da opinião pública. Para isso, é imprescindível desfazer equívocos que podem desvirtuar a discussão da proposta.

Assim, é importante sublinhar que essa proposta não se destina a resolver os impasses em relação ao atual governo. Mudança do regime político, mediante consenso do Congresso e da opinião pública, só daqui a três anos, a partir das eleições de 2018. A permanência ou remoção do governo Dilma terá de ser resolvida dentro do atual sistema presidencialista, e o antes possível, face aos imensos custos que o País está incorrendo em termos de paralisia administrativa e retrocesso econômico-social.

Tal situação ressalta precisamente um defeito capital do atual sistema, em que a troca de governo só pode ser feita mediante a destituição, sempre penosa e traumática, do presidente da República. No parlamentarismo, ao contrário, a queda de um governo é solução prevista nas regras do jogo político, e não um problema.

O sistema parlamentarista separa as funções da chefia do Estado, que cabe ao presidente da República, eleito pelo voto direto e com mandato fixo, e a chefia do governo, que é exercida pelo primeiro-ministro. O presidente indica o primeiro-ministro, que escala a equipe ministerial e submete ao Congresso um programa de ação, a ser aprovado pela maioria. Se, e quando, essa maioria se desfizer, num voto de desconfiança, cairá o primeiro-ministro e sua equipe, e o presidente deverá negociar a formação de um novo governo, ou mesmo, conforme as circunstâncias, convocar novas eleições parlamentares.

Outra objeção ao parlamentarismo, equivocada, mas muito difundida, supõe que ele confere poder demais ao Legislativo. Na verdade, este já é poderoso no atual sistema: emenda a Constituição, derruba vetos, altera medidas provisórias, paralisa projetos do Executivo e, por vias tortas ou direitas, aumenta gastos e mexe nos impostos. No parlamentarismo, de fato, os parlamentares não ganham mais poder; ganham, sim, mais responsabilidade. A maioria que apoia primeiro-ministro pode simplesmente derrubá-lo se votar contra projetos importantes ou se aprovar outros que contrariem o programa do governo. Mas se não houver maioria consistente para formar um novo gabinete e respaldar suas iniciativas, o mandato dos deputados é que pode ser encurtado, com a convocação de novas eleições. Os parlamentares dividem os ônus e pagam os custos de um mau governo.

O advento do parlamentarismo vai exigir e ao mesmo tempo favorecer, como condições simultâneas, mesmo que implantadas de maneira gradual, mudanças na gestão governamental, incluída a profissionalização da direção de órgãos públicos. Na mesma linha, impõem-se mudanças no sistema de partidos e eleitoral vigente. Neste assunto, nos últimos anos, o Congresso manteve ou piorou o que há de menos virtuoso. Mas creio que daqui em diante serão cada vez mais diferentes as circunstâncias, de modo a favorecer, por exemplo, a introdução de modalidades de voto distrital nas três esferas de governo, fator crucial ao barateamento das campanhas eleitorais e ao aumento da representatividade dos eleitos – voto distrital puro, no caso dos vereadores das grandes cidades, e o distrital misto (listas e distritos), nos mandatos de deputados federais.

Não faltarão céticos a respeito do sucesso dessas teses, dadas as possíveis (e grandes) resistências que surgirão no Congresso. Mas estou convencido de que o naufrágio do presidencialismo e a ânsia para desatar o novelo da crise – que é política, econômica, social e também moral – incentivará a mobilização da sociedade a favor de grandes mudanças e facilitará sua assimilação pelo mundo político, hoje tão desgastado, até como recurso para sua sobrevivência e renovação.

Artigo: Quando a queda do governo 
é a solução, não o problema

O Estado de S. Paulo, 27 de agosto de 2015.

O atual governo cumpriu apenas um sexto do mandato, mas, se dependesse da opinião da maioria dos brasileiros, já deveria ter chegado ao fim. As pessoas sentem que essa é uma condição necessária para desatar o novelo das crises econômica, social, política e moral, que se entrelaçam de forma perversa.

Ocorre que o sistema brasileiro é presidencialista: o chefe do governo, eleito por quatro anos, não pode ser removido do cargo antes do tempo, mesmo que tenha se revelado incompetente e/ou traído seus compromissos de campanha. No presidencialismo, a interrupção de mandato exige outros motivos, como crimes comuns ou de responsabilidade, num processo arrastado e penoso.

Fosse vigente parlamentarismo, o atual governo já teria sido obrigado a renunciar, sem traumas maiores – bastariam as derrotas sofridas no Congresso e a rejeição da opinião pública. Nesse sistema, existe, sim, o cargo de presidente da República, mas ele é o chefe de Estado e representa a nação. Não define as prioridades nacionais nem governa o país no dia a dia. Quem faz isso é primeiro-ministro, nomeado pelo presidente e apoiado pela maioria do Congresso. Ele é o chefe do governo: elabora seu plano de ação e preside o gabinete de ministros.

Se aquela maioria se desfizer, numa espécie de voto de desconfiança no governo, o gabinete de ministros vai embora. O primeiro ministro renunciante pode até pedir ao presidente que convoque novas eleições parlamentares, cujo resultado ou lhe devolve a maioria ou o levará a se demitir de uma vez.

É o que está acontecendo na Grécia, onde Alex Tsipras, o primeiro ministro, perdeu o apoio da ala esquerda do seu partido, renunciou e pediu ao presidente a dissolução da Câmara de Deputados e a convocação de nova eleição. Os deputados não querem isso, pois muitos temem não ser reeleitos. Por isso mesmo, os partidos estão procurando compor outra maioria que dê sustentação a novo governo, baseado no entendimento sobre o que fazer para enfrentar a crise econômica.

Se der certo, haverá novo primeiro-ministro. Se não, as eleições serão inevitáveis, e Tsipras pode até voltar fortalecido, caso seus atuais apoiadores cresçam nas urnas. Seu nome, hoje, é bem visto por mais de 60% dos gregos.

Como disse a primeira ministra alemã, Angela Merkel, em recente visita ao Brasil, “no parlamentarismo, a renúncia não é um componente da crise. A renúncia é a solução”.

O parlamentarismo, de fato, permite absorver melhor mudanças de governo e de políticas. Mas há objeções a esse sistema: a mais comum, e nem por isso menos equivocada, parte da ideia de que o Legislativo passaria a ser excessivamente forte. Nada mais falso. O Congresso, no presidencialismo brasileiro, já tem imensos poderes – derruba vetos, rejeita medidas provisórias, aprova bombas fiscais, emenda a Constituição, faz CPIs e até destitui presidentes, como no caso Fernando Collor. No parlamentarismo, o Congresso é obrigado a assumir mais responsabilidades e a ter mais responsabilidade.

Não dá para uma maioria integrar o governo e, ao mesmo tempo, votar contra projetos essenciais do Executivo – ou, então, aprovar outros que contrariem o programa do primeiro-ministro. Se o fizer, o governo se liquefaz, dando lugar a outro tipo de coalizão parlamentar, sem falar da possibilidade de serem convocadas novas eleições.

Na Constituinte, o sistema parlamentarista só não foi aprovado devido a um grande equívoco das forças que o defendiam. O então presidente José Sarney (1985-1989) dispôs-se a apoiá-lo, mas, em troca, pretendia exercer seu mandato durante cinco anos, e não quatro, como queriam os parlamentaristas.

Por incrível que pareça, aquelas forças, que eu integrava – junto com Ulysses Guimarães, Fernando Henrique, Mario Covas, José Richa, Roberto Freire e tantos outros -, recusaram o acordo, insistindo nos quatro anos. Armou-se o confronto, e os partidários de Sarney organizaram a derrota do projeto, agregando os constituintes que seguiam a liderança dos presidencialistas Orestes Quércia, então governador de São Paulo (PMDB), Marco Maciel, guru do PFL, e Leonel Brizola, líder do PDT e com grande influência nos eleitorados do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro.

A defesa do parlamentarismo foi um dos primeiros fatores da criação do PSDB, surgido de uma dissensão do PMDB, no fim da Constituinte. Todos os fundadores, sem exceção, batalhavam pela implantação do sistema. Por isso mesmo, hoje, sinto-me confortável ao defender junto ao partido a retomada da bandeira parlamentarista, não apenas como fidelidade às nossas origens, mas pela estabilidade e a governabilidade do país.

Que fique bem claro: não estou propondo a introdução do sistema parlamentarista como remendo destinado a resolver a atual crise política, tampouco para empurrá-la com a barriga. Ambas as coisas foram feitas na crise que sucedeu à renúncia de Jânio Quadros, aos sete meses de mandato, em 1961.

Os militares opuseram-se à posse do vice-presidente João Goulart, que viajava pelo exterior. Mas aceitaram que Jango assumisse o cargo se fosse aprovado o parlamentarismo. Dito e feito! Mas o resultado foi desastroso, pois, ao invés de fortalecer o novo sistema, Goulart empenhou-se na sua derrubada, que aconteceu 16 meses depois.

A ideia é que, nos próximos anos, preparemos a implantação do sistema nas eleições de 2018, para vigorar a partir de 2019. Não é pouca coisa: debater no Congresso e na sociedade, negociar com os diferentes partidos, encontrar o formato mais adequado ao Brasil e preparar as emendas e leis necessárias, incluindo a da profissionalização da direção dos órgãos públicos, um corolário natural do parlamentarismo. Paralelamente, estudar as condições do referendo que provavelmente será necessário.

Angela Merkel está certa: precisamos de um sistema em que a queda de um governo possa ser a solução, não o problema.