O Globo, 02 de junho de 2000

Antes mesmo que o projeto de lei restringindo a propaganda de cigarro em televisão, revista, jornal e outros meios de comunicação de massa chegasse ao Congresso Nacional, algumas bandeiras foram levantadas acusando o governo federal de estar, a um só tempo, censurando a liberdade de expressão comercial e desrespeitando a Constituição. Segundo os argumentos de quem é contra esse projeto de lei, a Constituição Federal não admite o banimento total da propaganda de serviços lícitos, e esse é o caso dos cigarros.

A acusação é grave e merece uma resposta. Em primeiro lugar, o projeto de lei do governo federal não prevê a proibição total da propaganda de cigarros e sim uma restrição dos meios em que pode ser veiculada. Portanto, não agride à Constituição que, em seu artigo 220, parágrafo 40, autoriza tal restrição.

Em segundo lugar, se a ação do governo nessa área merece críticas, é por não ter ocorrido antes.

A restrição à publicidade de cigarros já é realidade em países como Estados Unidos, Canadá, França, Itália, Austrália, Bélgica, Noruega, Suécia, Portugal, Finlândia, Tailândia e Turquia. A liberdade com que os fabricantes de tabaco atuam nos países do Hemisfério Norte tem os dias contados. E é justamente por essa razão que, cada vez mais, o mercado para reposição de consumidores mais promissores para companhias de tabaco está nos países em desenvolvimento. É onde essas companhias sempre atuaram mais livremente.

O governo federal está propondo a restrição à publicidade de cigarros por entender que trata de um assunto de saúde pública. E esse argumento é incontestável – mesmo por aqueles que levantam as bandeiras contra a suposta censura à liberdade de expressão comercial.

O cigarro é o maior inimigo individual da saúde pública. É o responsável pela morte de 100 mil brasileiros anualmente, o equivalente a um estádio do Maracanã lotado em dia de clássico. São vítimas de enfisema, cânceres de pulmão, esôfago, laringe, boca, pâncreas, rim, bexiga e colo de útero, ou de ataques cardíacos, derrames cerebrais e úlceras estomacais. São informações amplamente conhecidas, especialmente pelos fumantes. Ainda assim, eles fumam.

Entre os cerca de 30 milhões de fumantes em todo o Brasil, 90% começaram a fumar entre os 5 e 19 anos de idade. As companhias de tabaco sabem disso e, por essa razão, visam a atingir em especial o jovem em suas estratégias de comunicação. Gastam, apenas no Brasil, dezenas de milhões de dólares em publicidade e promoção de associam suas marcas à saúde, ao esporte, à emoção, à liberdade, à sensualidade. São associações falsas, cínicas e desprovidas de ética que induzem o adolescente a experimentar o cigarro. Mediante sua publicidade, elas fazem o jovem crer que o cigarro é o passaporte ideal para ele ser aceito como adulto.

Esse processo de autoafirmação induzido pela indústria do tabaco não dura para sempre, evidentemente. Estudos do Instituto Nacional do Câncer (INCA), braço o Ministério da Saúde no estudo e na prevenção do câncer, indicam que 70% dos fumantes adultos desejam parar de fumar. Mas a grande maioria não consegue. A nicotina é uma espécie de droga, que provoca dependência química. Ao chegarem à idade adulta, os fumantes conscientes dos prejuízos que o fumo provoca, têm que enfrentar as crises de abstinência decorrentes da falta de nicotina. O sofrimento e a dificuldade são enormes. A grande maioria fica presa ao vício e às doenças que irão, de uma forma ou de outra, encurtar suas vidas ou causar enormes sofrimentos. Ao contrário do que diz a propaganda de cigarros, não há liberdade de escolha.

A comunicação publicitária encomendada pelas indústrias de cigarro não vende o seu produto; vende ilusões. Ela não revela a quantidade de substâncias tóxicas e cancerígenas que cada cigarro contém, omite que o fumo provoca dependência química e sequer relaciona a quantidade de doenças fatais associadas ao tabagismo. Seus propósitos não são dignos de crédito e sua comunicação apenas reflete dissimulação.

Antes de ter elaborado o projeto de lei, o Ministério da Saúde realizou uma pesquisa junto a jovens fumantes e não fumantes em seis cidades brasileiras com o objetivo de verificar até que ponto o tabagismo é induzido pela propaganda. O resultado impressiona: os adolescentes são capazes de reproduzir conceitos de comunicação de diferentes marcas e reconhecem, em sua publicidade, a venda não de tabaco, mas de sedução, liberdade e prazer. A propaganda é o que os encoraja a experimentar.

O presidente do Conar alega, contra o projeto de lei que ora propomos, que o país não precisa de novas leis de publicidade. Respeitamos a atividade publicitária, o Conar e os serviços que presta ao consumidor brasileiro, quando decide defende-lo de alguma propaganda enganosa. Porém, no caso da propaganda das companhias de cigarro, não concordamos que o Código Brasileiro de Auto Regulamentação Publicitária seja suficiente para controlar a exposição dos jovens à mensagem das companhias de cigarro.

Alguém acredita que crianças e adolescentes deixem de assistir à televisão depois das 21h30, horário a partir do qual é permitida a veiculação dos comerciais milionários e maravilhosos de cigarro? Em caso de resposta positiva, uma informação: amostra realizada pelo Ibope na cidade de São Paulo mostra que no mês de abril, no horário entre 22 e 24h00, crianças entre 2 e 9 anos eram 11% da audiência. Já os adolescentes com idades variando entre 10 e 14 anos somaram 10% da audiência. Finalmente, jovens entre 15 e 24 anos eram 17% da audiência total.

Assim como assistem livremente à programação televisiva, esses jovens folheiam revistas e são impactados à vontade por outdoors espalhados pelas cidades brasileiras. Se restasse alguma dúvida sobre o real alvo das campanhas de cigarros, bastaria perguntar: a quem essas companhias querem atingir quando promovem megaeventos de rock, jazz, ou de esportes de aventura?

Se esse projeto de lei atinge algo, certamente não é a liberdade de expressão ou a informação comercial. Tenho a convicção de que ele atinge o coração da estratégia de aliciamento de novos fumantes e, a julgar pela polêmica instalada, os interesses de quem lucra com a doença alheia.