(Foto: Nilton Fukuda/ Estadão)

Por Morris Kachani e Pedro Venceslau

Com a falta de articulação do governo no Congresso e a troca de farpas entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia, mais do que a discussão sobre “nova” e “velha” política, a ideia sobre a aprovação e implantação de um sistema parlamentarista no Brasil ensaia voltar ao debate.

Defensor histórico do sistema, o senador José Serra (PSDB) propõe nesta entrevista sua adoção já a partir do final do mandato de Bolsonaro.

O parlamentarismo, que já foi rejeitado pela população em plebiscito realizado em 93, é o sistema de governo em que a chefia do Poder Executivo deve ter o apoio da maioria do parlamento e é substituída se perder esse apoio.

De acordo com Serra, com o parlamentarismo, a destituição dos mandatários seria menos traumática. Ao mesmo tempo em que, deputados ganhariam novas atribuições.

Estes três meses do governo Bolsonaro – um dezesseis avos do mandato –  ilustram bem as precariedades do presidencialismo. Não há um programa de ação político administrativa claro e coerente, a relação com o Congresso tende a ser conflitiva, nem mesmo o partido do governo funciona como tal, além de ser minoritário no Congresso, e a chance de prosperar um esquema tradicional de troca-troca com parlamentares vai aumentando. Note-se que Bolsonaro assume o estilo absolutista, mas só consegue ficar nisso. Manda menos do que um chefe de governo deveria mandar. Acha que fala diretamente com as massas, confundindo campanha eleitoral, que ele disputou com sucesso, com governar de verdade. Desde a redemocratização acompanhei mais ou menos de perto o começo de seis governos: Tancredo/Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma. O governo atual é o que começa mais fraco. 

E, é preciso que se diga ainda não há nenhuma força significativa na oposição que esteja botando para quebrar”.

O sr. acha que essa crise política no governo Bolsonaro pode fortalecer o debate sobre o parlamentarismo?

Eu creio que esse trimestre de governo Bolsonaro já fortalece o debate. Você vê o presidencialismo em estado puro. Ele teve uma vitória eleitoral incontestável. Três meses e um governo que parece não ter rumos. Do ponto de vista da articulação com o Congresso, não tem nada estruturado. Tem um problema estrutural.

Quando se fala de velha e nova política, que leitura o sr. faz?

Nova política e velha política é parte da orquestração eleitoral. Qual é a nova política? Dê um exemplo. Não existe velho e novo. Existe política, e ponto.

A classe política está muito desacreditada, não?

Desde que sou criança, e comecei a prestar atenção na classe política, que tem esse foco de descrédito e insatisfação. Isso é normal, diante da expectativa de que as coisas sejam resolvidas e bem resolvidas. O que não significa que o político não faça coisas boas. E elas são reconhecidas na hora do voto. Repare que na eleição o voto nulo ou branco tem um peso grande, mas ainda o voto positivo ganha.

Como explica o fenômeno das eleições de 2018? A Câmara se renovou mas entrou bastante gente inexperiente.

Tem 50 senadores novos. A renovação é muito grande e deve ser motivo de reflexão profunda dos partidos.

Geraldo Alckmin teve 4%, esperava-se que tivesse mais. Além disso a bancada do PSDB foi reduzida na Câmara pela metade.

O PSDB foi um dos partidos mais atingidos porque não afinou sua linha de atuação com o que a população esperava. Por outro lado, a tendência de rejeição ao que havia foi grande, foi ampla. Ainda assim em São Paulo nós ganhamos.

Doria representa a nova cara do PSDB?

Ele não representa a nova cara porque não temos nova cara. Não sei qual a nova cara.

O sr. acha que chegamos ao fundo do poço?

Já passei por muitas crises políticas para achar isso.

O sr. é otimista com o Brasil? Porque a crise parece muito acirrada.

A longo prazo, sim. A curto prazo, não muito. A longo prazo a gente tem todas as condições para ter um desenvolvimento sustentável com justiça social – o Brasil tem um potencial grande para isso. Eu vivi 13 anos fora, em outros países, e posso dizer que nosso potencial é imenso, comparado com nossos vizinhos. Agora, precisa ser bem governado, isso faz falta no Brasil. Pra isso você precisa ter um sistema que dê mais estabilidade.

A curto prazo o que vai acontecer?

Eu não jogo no quanto pior melhor. Meu desejo é que o governo Bolsonaro se saia bem. Não reeleito, mas que saia bem. Por causa do país. Isso não significa que eu não seja de oposição. Significa que eu não vou votar nunca em projetos que piorem as coisas. Vou apoiar aqueles que no meu entendimento são bons para o país, e vou propor inclusive. Creio que fui o parlamentar que mais aprovou projetos na legislatura passada.

Outro dia apareceu um artigo que dizia que se a reforma da previdência não passar, em um ou dois anos o país se torna ingovernável.

Eu não tenho essa visão apocalíptica. Eu sou a favor da reforma, acho que ela vai ter que ser feita de uma maneira gradual. É urgente que se faça um modelo de graduação, para que sejam aprovadas as coisas mais urgentes, porque tudo de uma vez o governo não vai conseguir.

Mas eu não tenho uma visão apocalíptica a respeito. Acho que está se exagerando nisso. “A previdência é um caos”, dizem. Não compartilho essa tese. O que não significa que não seja a favor de votar a reforma, mas os moderados e ponderados às vezes saem perdendo nesse tipo de discussão. Esse negócio de ‘ou vota-se tudo’ ou ‘o caos’, é algo de que não compartilho.

Você está no meio e acha que não é bem assim. E por pensar desta forma, é considerado anti-reformista. É preciso reconhecer as dificuldades e montar um cronograma com seleção de prioridades mais adequadas.

Considera a reforma apresentada por Paulo Guedes melhor que a do Temer?

Vai pelo mesmo caminho, é parecido. Agora o que eu acho é que só vai andar uma proposta negociada com gradualismo, não tenha dúvida. Eu se fosse o governo, estaria trabalhando febrilmente em um esquema de gradualismo, que no final é o que acho que vai acontecer.

Como o sr., que se exilou por 13 anos, enxerga a celebração em torno de 64?

Me parece inoportuno. Lembrando que sou o único congressista, de todo o Senado e Câmara, que foi punido pelo golpe de 64. Eu tinha 22 anos recém-feitos. Fui exilado, fiquei 13 anos fora. Inclusive condenado à prisão em um processo inventado, por conta de um discurso que teria feito antes do golpe em reunião estudantil.

Em matéria de luta armada nunca houve nada, eu nunca soube atirar nem com estilingue, aliás sempre fui contra estilingue pra matar passarinho. Eu era inteiramente inofensivo, o que não impediu que passasse 13 anos no exílio, inibido de voltar por conta de uma condenação.

O sr. imaginava que este assunto seria rediscutido a essa altura?

Não, mas em todo caso faz parte. É do jogo político. Falta de assunto, às vezes equívoco de estratégia, aliás nenhum presidente pós 64, nem o general Figueiredo, que foi o último, fez exaltação de 64. Me pareceu fora de lugar. É demonstração de muita inabilidade. Pra que?

O sr. foi chanceler. Como enxerga esse momento com o chanceler atual dizendo que nazismo é de esquerda?

É uma coisa fora de propósito. O governo parece meio perdido em matéria de política externa e mais ainda o ministro. Que curiosamente está negando toda a tradição do Itamaraty, de uma administração isenta, que una a corporação, discreta, ponderada. O Itamaraty tem essa tradição inclusive, que perpassa governos diferentes. Mas o atual ministro está querendo ser original. Hoje o próprio corpo do Itamaraty o rejeita.

O Itamaraty é uma corporação excepcional. Os ministérios militares e de relações exteriores no Brasil têm a tendência de sempre serem melhor organizados, exatamente por conta da estabilidade na carreira, pelos critérios de promoção e tudo o mais. Os militares e o Itamaraty são os ministérios mais estáveis. No Itamaraty o corpo é todo de carreira, todos são concursados.

Por que o sr. deixou a chancelaria?

Porque estava muito longe da política interna.

Quais são as virtudes do parlamentarismo e as vicissitudes do presidencialismo de coalizão?

No presidencialismo de coalizão não há uma solidariedade entre Congresso e executivo. O governo tem que batalhar para maioria, que na experiência histórica brasileira sempre se mostrou instável. No parlamentarismo, se você faz um governo de maioria, tem essa solidariedade. Se ela é retirada, cai o governo. A responsabilidade do deputado é muito maior. Tem uma implicação mais direta, inclusive sobre suas chances de disputar a reeleição.

E quais as vicissitudes do presidencialismo de coalizão?

As que o Brasil tem tido. Se você fosse fazer uma exposição mundial, o Brasil talvez teria o maior número de exemplos.

Será que a população iria aceitar a tese do parlamentarismo e colocar mais poder na mão do Congresso? O Congresso tem qualidade para assumir esse papel?

Essa pergunta tem como premissa um equívoco profundo, de que parlamentarismo é entregar o poder ao Congresso, mais do que o presidencialismo já entrega. É uma pergunta errada.

No presidencialismo, no pós guerra, quatro presidentes não terminaram os mandatos. Sem contar o Tancredo, que foi por doença, tivemos o Getúlio, Jango, Collor e Dilma. Nos quatro episódios o Congresso teve seu papel. Portanto quatro presidentes terminaram o mandato: Dutra, Juscelino, FHC e Lula, e quatro que não terminaram, com o Congresso jogando um papel-chave.

A premissa mais errada que se pode ter como ponto de partida nessa discussão é aquela que considera que parlamentarismo é poder para o Congresso. Claro que o Congresso terá poder, mas terá também responsabilidade. Hoje, o Congresso pode concordar ou discordar da política do presidente, mas não tem a responsabilidade com ela. Não é solidário à política do governo, mesmo quando a maioria é governista. Já no parlamentarismo, se essa solidariedade não se mantém, o governo cai.

O sr. acredita que existe clima no Congresso para abrir esse debate?

Clima para aprovar seria prematuro, espaço para abrir o debate creio que existe.

A Itália, por exemplo, teve mais de 60 governos em 70 anos. A Bélgica passou anos sem um governo permanente por conta do sistema parlamentarista…

A Itália se deu muito bem no pós- guerra com o regime parlamentarista. Tornou-se um país desenvolvido. Tem fatores de instabilidade, mas são de natureza diferente do presidencialismo. Quando você precisa trocar um governo, não tem que ter um golpe.

Esse é o ponto central, nevrálgico…

Eu diria que é um dos pontos. O Congresso precisa ser responsável. Se a maioria não apoia o governo, cai o governo.

Como está esse debate no PSDB? Em maio vai ser feito um novo estatuto…

Vai ser retomado. O parlamentarismo está no programa do PSDB. Creio que terá uma boa recepção.

O sr. comentou que nova e velha politica é uma ideia que não existe. Esse toma lá dá cá, de dar cargo e verba em troca da votação das emendas e propostas de governo, isso é natural da política?

É o normal da política. Na boa política se faz isso sem grandes traumas. Dou como exemplo imodesto a minha experiência. Fui ministro da saúde, enfrentei interesses, foi uma administração que teve muitos confrontos. Ainda assim, sempre tive apoio amplíssimo no Congresso, nunca fiz troca-troca  e atendi a todos, jamais houve qualquer espécie de barganha.

Se era uma coisa séria, atendia. Fiz isso na prefeitura e fiz isso no ministério. Devo dizer também que há um mito a respeito de emendas de deputados: a maior parte delas, 80, 90%, são boas, refletem demandas da população, porque o sujeito precisa ser reeleito, e ele tem que fazer as coisas que a comunidade realmente está demandando.

Por exemplo, avisei que ia aceitar emendas que não fossem pra construir novas obras. Só emendas pra concluir obras em andamento. Ninguém ia construir hospital que depois ficaria pela metade do caminho. A ideia era concluir o que já estava feito. E os deputados se rebelavam? De jeito nenhum. Porque eles conseguiam que as coisas fossem concluídas e postas em funcionamento.

A construção de um hospital custa entre uma e duas vezes o custo de manutenção do próprio hospital por ano. É incrível. Você constrói, monta, equipa, depois o esteio dele em dois anos bate com o custo da construção e equipamento.

Outro exemplo foram certas políticas que eu mesmo impulsionei e eram importantes, como o controle de diabetes. Pedia aos deputados, “façam emendas pra mim”. Se você der a dica, eles topam. Cabe ao Executivo orientar as emendas.

O sr. acha que a Lava Jato exagerou em alguns momentos? A prisão do Temer, como a enxergou? Houve uma certa espetacularização ali?

A Lava Jato foi um processo inevitável e muito importante.

Creio que houve espetacularização sim, me parece que isso é um consenso. Não estou entrando no mérito, estou falando da forma.

Como avalia os casos relacionados ao sr.?

 Este assunto não é pauta. Estamos aqui para falar sobre parlamentarismo.

 O sr. também foi ministro da saúde. Como anda nossa saúde?

Acho que nem de longe aproveita-se o potencial existente. Que não é tanto dinheiro – dinheiro também é importante-, mas você tem uma máquina gigantesca, que tem que articular melhor. Qual a política hoje? Difícil. Se você perguntar ao ministro, ele vai dizer alguma coisa mas pouco convincente. Não estou me referindo a suas qualidades e defeitos, mas ao próprio governo. Saúde é uma área que precisa ter programa claro com capacidade técnica e disposição para enfrentar conflitos. É uma área conflitiva, porque você lida com setor privado, com as corporações existentes, e ainda precisa articular com municípios, Estados e União. É complexo.

Quais suas pretensões daqui pra frente?

Ter uma boa avaliação do meu trabalho no Senado. O que vai acontecer daqui a 4 anos está em aberto. A expectativa é de que o país vá bem e eu possa contribuir da melhor forma possível.

Em termos de saúde, o sr. está bem?

 Estou bem, não tenho nenhuma doença, fora a dificuldade com o hábito de dormir.

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PRESIDENCIALISMO X PARLAMENTARISMO

*em 93, Fernando Henrique Cardoso e José Serra escreveram o artigo “Parlamentarismo no Brasil: Como e Porque”. Aqui uma compilação para facilitar o entendimento:

O parlamentarismo separa funções de chefe do governo (o primeiro-ministro) e chefe de Estado (o presidente da República). No presidencialismo, ambas as funções são exercidas pelo presidente.

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No presidencialismo, os mandatos são rígidos. Tanto o Presidente como os deputados e senadores podem ser destituídos legalmente, mas só em casos excepcionais. Só quando cometem crime no exercício da função e são julgados culpados, o Presidente por dois terços do Legislativo, os deputados ou senadores pela maioria absoluta dos seus pares.

No parlamentarismo, os mandatos são flexíveis. Os mandatos dos deputados têm a duração máxima prevista na Constituição, de 4 anos. O do primeiro-ministro termina junto com os deputados. Mas ambos podem ser encurtados em caso de dissolução da Câmara ou moção de desconfiança contra o gabinete. E isso não é necessariamente um caso excepcional, como um crime e castigo, mas a solução normal de um impasse político entre o Executivo e o Legislativo.

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Só a Câmara vota para confirmar, eleger ou destituir o gabinete. O Senado tem funções secundárias. Ele se limita em geral, a revisar as leis vindas da Câmara, aprovando-as, emendando-as ou rejeitando-as. Por isso, só a Câmara pode ser dissolvida, e o Senado não.

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O parlamentarismo é o sistema de governo mais comum no resto do mundo, especialmente o mundo desenvolvido, incluindo toda a Europa, Japão, Austrália e Canadá.

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O simples fato de saber que o gabinete pode ser substituído e a Câmara dissolvida, torna o eleitor muito mais consciente de sua influência e mais disposto a exercê-la. E obriga tanto o gabinete como o parlamento a ficarem mais atentos às opiniões e necessidades do eleitorado.

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No presidencialismo, como os mandatos são rígidos, as posições políticas também tendem a se enrijecer. Legalmente, nem o presidente, nem os parlamentares estão arriscados a ser destituídos por causa de um impasse político. Logo não há incentivo ao entendimento. Resultado: os conflitos levados às últimas consequências ameaçam descambar para o vale-tudo, extrapolando as regras do jogo democrático.

No parlamentarismo, a substituição do gabinete ou a dissolução da Câmara são remédios legais para os conflitos. E a sua simples possibilidade torna as posições mais flexíveis, facilitando o entendimento.

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Nossa tradição presidencialista esvaziou as funções próprias do Legislativo – a elaboração das leis e a fiscalização do Executivo. Por isso grande parte dos parlamentares virou uma espécie de despachantes de luxo: em vez de atuar no congresso, vivem nos ministérios servindo de intermediários das demandas das suas bases eleitorais.

O presidente da República, por seu lado, quando se vê em minoria no congresso, não pensa em negociar às claras com os partidos sobre o que cada um acredita que é melhor para o país. Geralmente acha mais fácil apelar para o é dando que se recebe – a distribuição de empregos, verbas e outros favores aos parlamentares, seu parentes e amigos. Desse modo, consegue eventualmente aprovar os projetos do governo. Mas solapa a disciplina partidária, ajuda a desmoralizar a atividade política e acaba agravando a instabilidade de sua própria base parlamentar.

Incha-se a máquina do governo com apadrinhados políticos, abrindo as portas à incompetência, ociosidade e corrupção, e desmoralizando os servidores de carreira.

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O método pelo qual elegemos nossos deputados (sistema proporcional) é um dos piores do mundo.

Como a colocação dos candidatos na chapa depende da votação individual, a regra na campanha eleitoral é cada um por si e todos contra todos. Principalmente contra outros candidatos do mesmo partido e que disputem a mesma faixa do eleitorado.

O método também diminui a representação do eleitorado das grandes cidades. É mais fácil se eleger deputado com um reduto forte no interior do que com o voto das regiões metropolitanas, que se dispersa por um número muito maior de candidatos.

Já o sistema distrital puro resolve em parte esses problemas. O eleitorado do Estado é dividido em distritos mais ou menos do mesmo tamanho, e cada distrito elege um deputado. Assim o eleitor pode saber exatamente quem  é o representante de seu distrito. A representação das regiões metropolitanas e do interior é necessariamente equilibrada.

Mas esse sistema tende a dar peso excessivo aos interesses locais e dificulta a representação dos pequenos partidos e das minorias em geral.

 

Serra afirma que, embora pessoalmente apoie o sistema distrital puro, há mais “conciliação” em torno do misto. Compare os sistemas no quadro anexo: