O abuso econômico das patentes deve ser encarado como questão de Estado

José Serra, O Estado de S.Paulo
22 de abril de 2021 | 03h00

O Senado Federal vem discutindo, acertadamente, medidas que alteram a Lei de Propriedade Industrial na direção de uma nova agenda global. Pretende-se promover maior escala de vacinação para enfrentar o novo coronavírus a partir da flexibilização dos direitos de patentes. Trata-se de uma decisão relevante, pois os países em desenvolvimento vêm encontrando dificuldades no acesso às vacinas, ficando mais vulneráveis a novas ondas de contágio da doença. E não apenas esses países, mas também a economia global.

Na Organização Mundial do Comércio (OMC), África do Sul e Índia lideram uma agenda que busca flexibilizar regras sobre patentes previstas em acordos internacionais, com o objetivo de promover a vacinação em países não desenvolvidos. Ex-chefes de Estado enviaram recentemente uma carta ao presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, em apoio a essa demanda. Na carta os signatários manifestam sua preocupação com o monopólio da tecnologia das vacinas durante a pandemia. Nota-se que economistas renomados – com Prêmio Nobel – também assinaram o documento encaminhado ao presidente norte-americano.
Três falhas de mercado no setor farmacêutico representam um grande desafio para economistas no debate. Primeiro, a demanda de vacinas em relação ao preço é inelástica, ou seja, a decisão dos países para adquiri-las não depende do preço. Segundo, o consumidor tem poder de decisão reduzido sobre qual vacina adquirir, dado que se trata de questão de vida ou morte. Terceiro, a barreira à entrada de concorrentes na indústria farmacêutica é notoriamente elevada. Se há elevado número de empresas no ramo, também existem diversos expedientes para formação de poderes monopolísticos.
O indiano Prabodh Malhotra analisou o impacto, na Índia e em países em desenvolvimento, do famoso acordo internacional sobre direitos de propriedade, conhecido como Trips – Trade Related Intellectual Property Services –, em seu livro Impact of Trips in India, an access to medicines perspective, que recomendo aos interessados no assunto.
Prabodh observa que o Trips é um instrumento jurídico que favorece desproporcionalmente a indústria farmacêutica, restringe o acesso a medicamentos e tem potencial para causar mortes desnecessárias em países em desenvolvimento. Nações desenvolvidas se beneficiaram efetivamente de invenções e descobertas de outros países, sem limites, mas o Trips nega às nações em desenvolvimento as mesmas oportunidades.
Cabe esclarecer que os lucros auferidos pela indústria farmacêutica são importantes para tornar viáveis investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Sem uma margem de lucro razoável haveria desincentivo à atividade inovativa. Mas também não se pode esquecer que o regime de patentes é uma exceção ao livre mercado, um dos princípios postulados pela nossa Constituição federal. Esse princípio constitucional supõe que toda exceção deve ser aplicada de forma ponderada, especialmente quando há abuso econômico na provisão de produtos e medicamentos durante uma pandemia.
As patentes e o direito às políticas públicas fazem parte da minha trajetória de vida pública, especialmente quando estive à frente do Ministério da Saúde. Coordenei a reforma da Lei de Propriedade Industrial em 2001, que resultou em maior poder do Estado no processo de concessão de patentes. Antes disso já havia assinado o Decreto n.º 3.201, de 1999, com o objetivo de inaugurar no Brasil regras sobre a implementação da licença compulsória, permitindo a quebra temporária de patentes em casos de emergência nacional ou interesse público.
Essas reformas foram feitas observando dispositivos específicos previstos no próprio acordo Trips. Com a licença compulsória no leque de possibilidades, tivemos condições de negociar forte redução do valor dos medicamentos usados no tratamento de aids, hepatite e outras doenças. Vencemos a guerra de preços contra os laboratórios adotando a tese de que ninguém pode gerar superlucros pondo em risco o direito à vida.
O arranjo jurídico em vigor no Brasil autoriza o governo federal a licenciar compulsoriamente a exploração de vacinas ou outros medicamentos patenteados por qualquer instituição pública ou empresa privada no País. Assim, o principal obstáculo para o Brasil ter acesso a vacinas e medicamentos não reside na existência de patentes, mas sim no compromisso e na disposição do governo federal para enfrentar as empresas que estejam usando tais patentes de maneira que permita penalizar a população brasileira, bem como para fazer os investimentos necessários à expansão da produção de vacinas no País.
O abuso econômico das patentes durante a pandemia deve ser encarado como questão de Estado. Na batalha contra o novo coronavírus, o Congresso Nacional deve atuar quando o Poder Executivo revelar-se omisso em relação ao tema, aperfeiçoando a Lei de Propriedade Industrial na parte que regula a licença compulsória. Essa é uma agenda global que interessa profundamente aos países em desenvolvimento na luta contra o vírus.

SENADOR (PSDB-SP)