Deve-se evitar a todo custo o desvio do espaço fiscal aberto com a PEC 23 para despesas sem relação direta com a seguridade social.

José Serra, O Estado de S.Paulo
09 de dezembro de 2021 | 03h00

O Senado Federal vem-se opondo a uma aprovação, a toque de caixa, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 23. Apresentada pelo governo, essa PEC visa a romper a regra constitucional do teto de gastos públicos e postergar o pagamento de dívidas do governo – os chamados precatórios – já reconhecidas em definitivo pelo Supremo, após longuíssima tramitação.

Essas duas medidas, que permitiriam aumentar em R$ 106 bilhões os gastos no ano que vem, contêm um alto potencial de pedaladas fiscais. Diferentemente do que argumenta o governo federal, parcela relevante desses gastos, supostamente emergenciais, não será obrigatoriamente destinada a cumprir o modesto programa de mitigação da miséria chamado Auxílio Brasil.

Fique claro que a proposta do Executivo não é apenas um remendo, pois, na prática, ela promove o fim do teto de gastos. Criada como resposta à crise econômica e fiscal do final do governo Dilma, a adoção da Emenda Constitucional do Teto de Gastos pressupunha a necessidade de manter o crescimento da despesa pública em patamar inferior às expectativas desordenadas de expansão orçamentária do País. Se para alguns continha muitos defeitos, produziria, entretanto, resultados positivos no curto prazo, graças à expectativa de que os gastos estariam sob controle nos anos vindouros.

O teto de gastos estabelece um limite para o crescimento das despesas públicas da seguinte forma: o volume de pagamentos realizados pela União em 2016 tem sido corrigido todos os anos pela inflação apurada de julho a junho. Em agosto, o governo encaminha para o Congresso a proposta de orçamento do ano seguinte, com base num total de gastos predefinido, limitado pela regra do teto. Isso permite ao Congresso discutir e decidir como deve ser a alocação dos recursos públicos, definindo as prioridades em diálogo com o Poder Executivo.

A proposta do governo muda o parâmetro que atualiza o teto de gastos anualmente. Em vez da inflação apurada de julho a junho, passaria a ser a de janeiro a dezembro, que é medida apenas em janeiro do ano seguinte. Note-se que o limite de gastos seria, com isso, determinado com base em estimativas de inflação, com as respectivas margens de erro.

Dessa forma, grupos de interesses seriam incentivados a estimar taxas de inflação mais descoladas da realidade, comprometendo, ainda mais, a qualidade do processo de discussão e aprovação do Orçamento. Em última análise, o Orçamento seria aprovado em dezembro, sem a definição dos limites de gastos do teto. Diríamos que o governo pretende, com isso, constitucionalizar o princípio do orçamento-ficção no País.

A PEC 23 também cria obstáculos para o pagamento de precatórios, que são dívidas líquidas e certas, decorrentes de sentenças judiciais em última instância. Na prática, trata-se de uma nova modalidade de pedalada fiscal: abre espaço no teto de gastos, postergando despesas obrigatórias que, mais cedo ou mais tarde, tornam-se dívidas acumuladas em bola de neve. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, esse passivo pode alcançar R$ 850 bilhões já em 2026.

Os senadores José Aníbal (PSDB-SP), Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) apresentaram uma proposta alternativa, sem pedaladas fiscais em seu DNA e sem comprometer o teto de gastos. As emendas propostas abririam um espaço fiscal de R$ 89 bilhões no Orçamento do ano que vem, ao permitir o pagamento de todos os precatórios fora do teto. Sobrariam R$ 25 bilhões para corrigir gastos sociais mal planejados no Orçamento, restando ainda R$ 64 bilhões destinados a reforçar o programa Bolsa Família, que já contempla R$ 35 bilhões no ano que vem. Ou seja, as emendas destinariam uma verba total de R$ 99 bilhões para assistência social, podendo beneficiar 21 milhões de brasileiros, considerando um auxílio de R$ 400 por mês.

Essas emendas incluem dispositivos que tornariam a gestão de precatórios mais eficiente, evitando inseguranças jurídicas e imprevisibilidades. O governo contaria com instrumentos de negociação baseados em acertos de contas, sem impor calote e perdas para os credores. Tudo isso sem alterar o método de correção do teto de gastos, preservando a qualidade do planejamento fiscal do Orçamento.

No processo de votação da PEC 23 no Senado, ainda que não tenham sido aprovadas todas as emendas, a redação enviada pela Câmara dos Deputados foi aprimorada em aspectos fundamentais: o limite de pagamento de precatórios passa a vigorar somente até 2026 e qualquer espaço fiscal adicional gerado pelas mudanças fica vinculado exclusivamente a gastos sociais.

O Senado Federal está diante de um enorme desafio: não permitir que o governo ponha em risco a sustentabilidade fiscal do Auxílio Brasil. Deve ser evitado a todo custo o desvio do espaço fiscal aberto com a PEC 23 para despesas que não tenham relação direta com a seguridade social. Ao fim e ao cabo, a prioridade deve ser a viabilização fiscal de uma agenda mais robusta na área da assistência social, na linha de ação aprovada pelo Senado.

*SENADOR (PSDB-SP)