Folha de S. Paulo, em 13 de maio de 2005

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte… É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.
Joaquim Nabuco

Coube a Caetano Veloso atualizar o epíteto com que Ezra Pound brindou os poetas – são as “antenas da raça”– quando, no CD “Noites do Norte”, emprestou sua melodia a esse trecho do livro “Minha Formação”, do grande pernambucano Joaquim Nabuco. O compositor, ele mesmo uma das antenas da raça brasileira, notou o que havia de revelador e terrível no parágrafo de Nabuco. Um trecho retirado de seu contexto para, depois de relido, ser devolvido a seu nicho original com sentido tão desvelado como revelado.

Vale a pena atentar para a atmosfera a um só tempo soturna e álacre que Nabuco emprestou à escravidão em “nossas vastas solidões”. Há ali uma atmosfera que não renega a sujeição e a violência, mas também se vê pintado o abrigo quase caloroso que nossa cultura imprimiu à escravidão. Gilberto Freyre, outro pernambucano que ajudou a entender o Brasil, soube caracterizar com cores muito vivas, inclusive as do sangue negro, logo nas primeiras páginas de “Casa Grande e Senzala”, a triste naturalidade com que a servidão foi se imiscuindo não apenas em nossa formação mas também em nosso caráter.

Falo das sementes que foram plantadas de uma forma particularmente perversa de discriminação, que é o racismo cordial. O étimo da palavra “cordial” é “coração” – o órgão ao qual os antigos atribuíam a morada dos sentimentos. O “racismo cordial” ousa ser doce em seu preconceito, finge tolerância em sua violência, afeta grandeza em sua mesquinharia discriminatória. E, ao fazê-lo, cassa do oprimido o direito à reação, impondo-lhe obsequioso silêncio.

Esse mascaramento resultou em realidades curiosas. Quantos dos leitores sabem, por exemplo, que a infelizmente muito maltratada avenida Rebouças, em São Paulo, presta homenagem à memória de um negro, Antônio Pereira Rebouças Filho, engenheiro com especialização na Europa que, de volta ao Brasil, teve atuação fundamental no desenvolvimento das nossas ferrovias? Um seu irmão, André, também engenheiro, batiza o conhecido túnel do Rio.

O mesmo se fez com Teodoro Sampaio, homenageado em rua paralela à outra. Também negro, ele teve a cor escondida entre as suas muitas qualidades: engenheiro como os outros, geógrafo responsável pelo primeiro mapeamento geodésico do país, militante incansável em favor do saneamento básico e fundador do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

Negros ou descendentes eram Machado de Assis, promontório das letras pátrias; Gonçalves Dias, um formador de nossa literatura; Lima Barreto, crítico dos descaminhos da República; Cruz e Souza, poeta acima de seus pares; José do Patrocínio, jornalista ímpar e militante abolicionista; e, claro, Zumbi dos Palmares, em quem o anseio de liberdade atravessou os limites da dor. Exceção feita a este último, exaltam-se as qualidades de brasileiros tão notáveis omitindo-se a sua condição: eram negros. Sopra a voz da má consciência: “Eram bons como qualquer branco!”

O país não precisa de cartilhas de linguagem, mas de políticas públicas conseqüentes. O princípio da igualdade entre os homens, presente em nossa Constituição, requer precondições para ser realidade vivida. Negros ganham salários inferiores aos de brancos para exercer as mesmas funções, e o perfil racial da universidade está distante do da sociedade, desproporção também existente no serviço público. A reparação racial, por mais que esteja garantida por leis passadas e venha a ser garantida por legislação futura, terá de ser, não obstante, construída.

Se é verdade – e é – que este país discrimina mesmo é o pobre, então forçoso é reconhecer que os negros são objeto de uma dupla discriminação.

Chegará o dia em que a omissão da cor da pele de uma personalidade não mais será uma maneira de a embranquecer. Até lá, precisamos, nós todos, brancos e negros, à moda dos Rebouças, ser engenheiros, mas de uma particular engenharia social, que deixe como obra construída a igualdade de fato.

Esperemos que, em futuro nem tão distante, do grande Nabuco ressoe e reste límpida apenas a grandeza de sua prosa, já livre da triste realidade que ela antevê e relata.