Isto É Dinheiro, 10 de junho de 2016

O ministro das Relações Exteriores José Serra está com pressa e trabalha para abrir novas frentes de negociações bilaterais para impulsionar as exportações brasileiras. Ele contou seus planos à DINHEIRO

Quais seus planos para o Brasil retomar acordos bilaterais que foram deixados de lado em prol de uma proximidade duvidosa com o Mercosul?

Essa questão de negociação de acordos comerciais tem muito de vontade de fazer. É preciso ter clareza que se quer fazer a negociação e também uma decisão política em alto nível. Depois, os negociadores vão lá e executam. Acho que nos últimos anos não havia essa decisão clara. Mesmo quando se iniciava uma negociação, mesmo que ela nem fosse com um grande parceiro, ela não andava. Agora há essa vontade clara no Brasil, mas também na Argentina. É evidente que não vamos negociar por negociar, nem fazer acordos de qualquer maneira. Estou falando de acordo toma lá, dá cá, medindo as concessões contra os ga-nhos, na base da reciprocidade. Dessa forma, o Mercosul pode retomar sua proposta inicial de ser um caso de regionalismo aberto. Para o Brasil, o Mercosul faz sentido se ele for uma base para as em-presas adquirirem musculatura para a competição global. Os mercados da Argentina, do Paraguai, do Uruguai, são muito importantes, mas não são suficientes.

 

Estados Unidos e Europa estão na sua lista de prioridades. Em que áreas e como estes processos podem ser acelerados?

Com a União Europeia, naturalmente, a iniciativa mais importante em curso é a negociação do acordo com o Mercosul. A União Europeia, em conjunto, é o principal investidor no Brasil e o acordo, além de abrir novas possibilidades comerciais para os produtos brasileiros, vai também estimular as empresas europeias a investir mais no Brasil. Fizemos a troca de ofertas para retomar as negociações recentemente. A oferta inicial europeia de acesso a mercados deixou de lado produtos importantes para o Brasil, como etanol e carne bovina, mas é um começo. Vamos buscar um acordo que seja equilibrado e remova barreiras nem sempre óbvias. Por exemplo, o couro sem processar entra na UE sem pagar tarifas de importação; o processado paga 6,5% e o calçado de couro, 17%. Com isso, os calçados produzidos na Itália, para mencionar um caso, importam matéria-prima barata e se protegem com tarifa alta, do que resulta uma proteção muito elevada que dificulta a competição para os calçados brasileiros mais sofisticados e caros. Os Estados Unidos são o segundo país para o qual o Brasil mais exporta. São também o país com maior volume de investimento direto no Brasil. Existem muitos mecanismos de diálogo, mas eles precisam ser melhorados. O potencial é imenso, em várias áreas, como meio ambiente, educação, ciência e tecnologia e inovação. Vamos explorar todas as possibilidades, inclusive para eliminar barreiras não-tarifárias, que são hoje as mais importantes. Vamos buscar resultados concretos e rápidos. Com pragmatismo, criatividade, preparo e firmeza.

 

A importância do Mercosul tem diminuído a olhos vistos, inclusive com medidas prejudiciais ao Brasil. Ainda vale a pena se manter nesse abraço de afogados?

De fato, tem havido uma queda no comércio interno do Mercosul desde 2011, mas isso não se deveu aos defeitos do bloco. Aconteceu porque a crise econômica afetou duramente os países membros. O principal motivo para a queda é a recessão no Brasil e na Argentina. Se a produção interna cai, você compra menos do exterior. É natural. Mesmo assim, o nível de 2015, da ordem de US$ 40 bilhões,  é ainda quatro vezes superior ao comércio de 1995. Pedi uma série de levantamentos desde que assumi o Itamaraty e alguns números são reveladores. Na média dos últimos seis anos, o Mercosul está em quarto lugar como destino das exportações brasileiras, atrás de China, União Europeia e Estados Unidos. No Mercosul, a Argentina é o país de maior relevância, respondendo por 60% das exportações do Brasil para o bloco. Das exportações para a Argentina, mais de 90% são de produtos industrializados. Em alguns setores, como automóveis, químicos, produtos de limpeza, vidros e chocolate, o mercado argentino responde por percentuais muito significativos do total das exportações brasileiras, de 30% a 40%. Para outros setores, como plásticos, máquinas, papel e pneus, a Argentina absorve 20% do total das exportações brasileiras. São números nada desprezíveis. Claro que o Mercosul pode e deve ser renovado e aprimorado. Vamos trabalhar para isso, corrigindo o que precisa ser corrigido.

 

Quais medidas poderá tomar com a Argentina para destravar o Mercosul?

O Mercosul não está travado. Como já disse, a causa maior do seu encolhimento nos últimos anos foi a estagnação, depois recessão e em seguida depressão que envolveu a economia brasileira. Daqui para a frente, as coisas devem melhorar, em razão do fim da depressão e do fato de haver uma boa convergência de visões de mundo entre o Brasil e a Argentina. Não por acaso, fiz questão de ir a Buenos Aires em minha primeira viagem internacional após assumir o Itamaraty. Foi uma ótima oportunidade para discutir com as autoridades argentinas, as relações entre os dois países, a situação regional e o futuro do Mercosul, que ambos sabemos precisa ser atualizado e melhorado. Para começar, concordamos que é preciso fortalecer o mercado interno do Mercosul, o livre comércio entre seus parceiros. Ainda há travas nessa área. O Brasil tem apontado, por exemplo, a exigência argentina de certificado adicional de segurança elétrica para produtos que já possuem certificação, restrições à importação de carne bovina e impostos mais elevados para produtos considerados de luxo. A Argentina, por sua vez, identificou medidas do Brasil que atrapalham suas exportações ao Brasil. Os países do Mercosul se engajaram nesse exercício, identificando medidas uns dos outros. Agora chegou o momento de tratar cada uma delas, medida por medida. Ver o que pode ser modificado para melhorar a fluidez do comércio. Mas também manter aquilo que tiver justificativa, por exemplo na proteção na saúde humana. É um exercício técnico complexo, mas já demos a diretriz a nossas equipes: avançar e produzir resultados. Uma das medidas que mais afetava o mercado interno do Mercosul já foi suspensa pelo governo do presidente Mauricio Macri: as Declarações Juradas Antecipadas de Importação (DJAI) foram substituídas por um sistema mais transparente e previsível. Estamos monitorando a implementação do novo sistema e qualquer preocupação levaremos diretamente ao governo argentino, pois temos um diálogo muito franco. Um setor crucial para nossos dois países é o comércio no setor automotor. Temos que buscar o livre comércio no Mercosul, pois em 2019 Brasil e Argentina terão livre comércio de automóveis com o México, mas não teremos livre comércio entre nós. O Mercosul deve constituir uma plataforma para a inserção da produção local na economia global. Cabe conversar também sobre o setor do açúcar, que está excluído da desgravação tarifária dentro do bloco. É certo que o Brasil é um país muito competitivo nesse setor e que há sensibilidades compreensíveis em nossos parceiros. Porém, passados 25 anos da criação do Mercosul, não faz sentido que se perpetue a exclusão do açúcar de nossos arranjos comerciais. Temos de superar tabus. É interessante ver que as exportações de açúcar do Brasil para a Argentina têm sido irrelevantes e que terceiros fornecedores como a Colômbia têm ampliado suas exportações para o sócio brasileiro do Mercosul. Talvez não seja possível uma desgravação imediata, mas uma abordagem gradual, com cronogramas relativamente alongados de liberalização comercial ou com eventual aplicação de quotas e/ou regime especial, poderia diminuir a resistência à plena inclusão do setor açucareiro no Mercosul.

 

Há alguma chance de o Brasil ter acesso e participar efetivamente de blocos de maior estatura global, como o Nafta, tal qual fez o México?

A conclusão do acordo Mercosul-União Europeia, se ficar à altura do que queremos, será sem dúvida um avanço de grande importância, da mesma dimensão, senão maior, do que a de alguns esquemas de integração mais badalados, como a Aliança do Pacífico, que é até o momento apenas um projeto de livre comércio. Não mais do que um projeto, preste atenção. A negociação Mercosul-União Europeia é de dimensão maior do que o Nafta, pois envolve uma população total de quase 800 milhões de pessoas, contra cerca de 400 milhões no Nafta. Ela não terá o mesmo impacto para o Brasil que teve para o México, porque, à época da assinatura do acordo, o México exportava cerca de 90% do total para o Nafta, enquanto o Brasil tem uma exportação muito mais diversificada e exporta cerca de 20% do total para a União Europeia. Mas nem sempre as pessoas percebem a dimensão deste acordo. Ele vai exigir um esforço interno de adaptação importante e teremos que desenvolver políticas de apoio e modernização industrial, assim como de redução do custo Brasil, para tirar o proveito que precisamos do acordo. Mas preste de novo atenção: a Europa é muito mais protecionista do que o Brasil, apesar do folclore. Por isso mesmo trabalharemos muito, intensamente, tendo presente o seguinte: não faremos concessões unilaterais. A reciprocidade é sagrada. Dos chamados grandes acordos, a Parceria Transpacífico ainda aguarda aprovação pelo Congresso norte-americano, enquanto a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento está em processo de negociação que não será nada fácil. Há às vezes excessivo fascínio pelo que é distante.

 

Quais os planos do governo de incluir os empresários brasileiros nessa nova política de expansão comercial?

É o setor privado que exporta, não é o governo. Portanto, é preciso ouvir para saber os problemas enfrentados por quem atua. Vamos ouvir nas negociações comerciais. No dia 20, eu e o ministro Marcos Pereira, de Indústria e Comércio, vamos nos reunir com todas as associações que participam da coalizão empresarial brasileira. É um grupo coordenado pela Confederação Nacional da Indústria, que reúne não só as associações da indústria, mas também do agronegócio e dos serviços. Vamos ouvir também na hora de definir as políticas. Vamos valorizar o Conex, que é o mecanismo da Camex para interagir com os empresários na definição das prioridades da política de comércio exterior. A reformulação da Apex, de promoção de exportações, e da Secretaria Executiva da Camex, a Câmara de Comércio Exterior, nos dão maior capacidade de coordenar a promoção comercial e a atração de investimentos. O empresariado terá naturalmente um papel central nesse esforço. Acredito muito no potencial da parceria entre o Estado e o setor produtivo. Vamos conversar muito e trabalhar juntos para ampliar rapidamente a participação brasileira no comércio internacional. Vamos recolocar o Brasil nesse mapa. Mais comércio significa mais e melhores empregos para os brasileiros. Aliás, a retomada do crescimento sustentado da economia vai ter de ser puxada por três vetores: exportações, investimentos em infraestrutura e recuperação do setor energético, que sofreu uma verdadeira devastação nos últimos anos.

 

Há demandas específicas dos empresários do comércio exterior que poderão ser atendidas agora?

A Camex vai passar a ser dirigida diretamente pelo presidente da República a fim de recuperar o seu poder de coordenação efetiva das políticas de comércio exterior. Vamos discutir ali os instrumentos direta e indiretamente importantes para as exportações, ou seja, tanto temas como tarifas aduaneiras e antidumping, quanto questões relacionadas à infraestrutura, à tributação e ao financiamento. Uma demanda importante dos empresários, por exemplo, é o “reintegra”, que alivia os custos tributários que encarecem nossas exportações, coisa que nenhum país esperto faz. Temos que examinar com atenção as possibilidades desse instrumento. A devolução de impostos indiretos na exportação é feita pelo mundo todo.

 

Quais setores econômicos poderão ganhar mais com a guinada na política?

Os setores que ganham mais com uma política de comércio exterior que busque abrir mercados são, naturalmente, os que têm maior competitividade. Aqueles que investem para aumentar sua produtividade, que inovam, e sabem procurar mercados, estarão mais bem posicionados para aproveitar os acordos que vamos conseguir.

 

Como o governo irá engajar as agências de exportação e fomento nesse esforço?

É preciso articular os esforços da Apex com a política comercial e a negociação dos acordos. Numa direção, a Apex pode ajudar a identificar os interesses ofensivos, tanto na área de mercadorias quanto de serviços, para municiar nossos negociadores. Na outra direção, os acordos só serão bem aproveitados se houver depois uma ação consistente de promoção comercial a fim de aproveitar as oportunidades abertas. Com a Apex bem entrosada com o Itamaraty, poderemos utilizar melhor a rede de setores de promoção comercial que temos nas nossas embaixadas a aproveitar melhor a boa articulação que a Apex desenvolveu com os setores exportadores no Brasil.

 

O Brasil emplacou o diretor geral  da OMC, Roberto Azevedo, um dos únicos pleitos bem sucedidos do governo Dilma. O senhor não acredita no multilateralismo da OMC? Por quê?

Não é que eu não acredite no multilateralismo da OMC. A OMC é uma instituição muito importante, e continua a ser sob suas regras que o comércio mundial se faz hoje. O sistema de solução de controvérsias da OMC é um instrumento excepcional, que o Brasil tem utilizado para combater barreiras ilegítimas em outros países. Aliás, infelizmente, os Estados Unidos têm se mostrado hostis ao fortalecimento desse mecanismo, que nós defendemos. Agora mesmo temos um processo em curso contra a Indonésia para eliminar barreiras às nossas exportações de frango. Na semana passada, deflagramos consultas para iniciar outro processo em relação ao mesmo país, a fim de abrir o mercado de carnes também e, nesta semana, iniciamos consultas para abrir um caso contra os subsídios ao açúcar concedidos pela Tailândia. O problema é que a OMC cresceu bastante em número de membros e, portanto, é mais difícil fechar qualquer negociação. Então, no caso das negociações para reduzir barreiras, com o impasse na chamada Rodada Doha, as perspectivas de se obter no médio prazo algum resultado são reduzidas. Pode ser que se consiga avançar em algumas áreas normativas, ou de maneira limitada, setorial, na redução de barreiras. Se houver essa possibilidade, o Brasil vai estar de olho, porque temos um comércio diversificado, dirigido a todas as regiões. A opção de buscar acordos bilaterais ou plurilaterais não diminui a importância do multilateralismo. São caminhos complementares e o Brasil vai explorar todos eles.

 

O Brasil ficou de fora do Acordo Transpacífico. Como analisa esse mega-acerto costurado pelos EUA? Pretende pleitear a participação do Brasil?

Se você for contar os que ficaram “de fora” do TPP, vai ter que contar a China, a Alemanha, a França, a Índia e muitos outros. É preciso olhar o acordo dentro dos objetivos dos que o organizaram. A Parceria Transpacífico, na perspectiva dos Estados Unidos, é um elemento da política de “pivot to Asia”, ou seja, redirecionar as prioridades da política externa norte-americana dando um maior peso àquela região. Nesse sentido, ela consolida os vínculos dos participantes com os Estados Unidos, num momento em que a expansão econômica da China na região é muito marcante. Muitos dos países que participam da iniciativa já tinham acordos de livre comércio entre si. Por exemplo, os países do Nafta já tinham acordos entre si, o Chile já tinha acordo com vários dos participantes e assim por diante. Embora o acordo tenha uma cláusula de adesão aberta, ele está pensado principalmente para os países asiáticos, que participam dos circuitos produtivos da região. No momento, vamos estudar melhor o acordo, ver quais as consequências para o Brasil. Ele possui dispositivos polêmicos, como as cláusulas que aumentam a proteção de dados de testes farmacêuticos, o que cria dificuldades para a aprovação de medicamentos genéricos. Por último, tenha presente: essa TPP vai demorar muitos anos para funcionar a pleno vapor, se é que funcionará a contento.

 

Foto: Isto É Dinheiro