A dimensão política dessa crise multidimensional se configurou no início da atual administração

O vice-presidente tem razão em destacar o papel nefasto da polarização. Ela não existe no vácuo, mas resulta de uma ação deliberada de radicalizar as diferenças entre ideias e valores na sociedade, de modo a dividi-la entre os extremos e excluir, assim, os moderados. Esse extremismo levou a um resultado incomum: no primeiro turno, os dois candidatos — Jair Bolsonaro (então PSL) e Fernando Haddad (PT) — receberam, respectivamente, votos de 33,4% e 21% dos eleitores aptos a votar. No segundo turno, o presidente foi eleito com votos de 31% de eleitores aptos, com um aumento de ausências, votos brancos e nulos. O percentual de votos nulos no segundo turno chegou a 7,4% (8,6 milhões), o maior índice desde 1989, e um aumento de 60% em relação a 2014, quando 4,6% dos votos foram anulados.

Um Executivo com esse grau de fragilidade, tanto no número de eleitores — que são os detentores originários da soberania — quanto em sua presença no Congresso, comete um erro fatal ao recusar o diálogo com os demais poderes constituídos. Sem diálogo e sem reconhecer a legitimidade dos interlocutores, não é possível convencê-los de que sua agenda é a melhor expressão do interesse da Nação. Insistindo em governar por decreto, virando as costas para os parlamentares, tratando-os com ofensas e acusações, um presidente presta um enorme desserviço, não apenas a si próprio, mas principalmente ao país.

A questão federativa está definida na Constituição brasileira, que é única e difere das demais federações. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas o fato de que são os estados que elegem o presidente, e não o voto popular direto, sugere que não devemos seguir cegamente um modelo estrangeiro. Trata-se de uma questão fundamental, que merece ser debatida, como também as relações entre os poderes. Depende apenas da disposição para o diálogo, o que é distinto da contabilidade de cargos e verbas à qual o Executivo parece estar inclinado a aderir.

José Serra é senador (PSDB-SP)