Acúmulo de atribuições prejudica o argumento da soberania política do Banco Central

José Serra*, O Estado de S.Paulo

O governo federal apresentou projeto de lei para tornar o Banco Central independente e o Congresso mordeu a isca. O risco é o tema virar uma “cascata de disponibilidade”, expressão batizada pelo Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman. O entusiasmo com a autonomia da nossa autoridade monetária máxima, apresentado como algo que só traz benefícios, é, de fato, um atalho mental baseado numa abordagem para lá de emocional da política econômica.

Kahneman conta a história do “pânico de alar” para explicar uma cascata de disponibilidade. O alar é um produto químico regulador de crescimento vegetal, muitas vezes utilizado em frutas com o intuito de melhorar suas qualidades de firmeza e coloração. Em 1989 a mídia americana espalhou a notícia de que o produto causava câncer em camundongos, criando pânico na sociedade. Depois que a Food and Drug Administration (FDA) – uma espécie de Anvisa americana – proibiu a comercialização do produto, pesquisas confirmaram que o alar oferece risco muito pequeno à saúde. Pois bem, a reação exagerada a um problema menor expressa bem uma cascata de disponibilidade.

Espero que a independência do Banco Central não vire tal cascata, pois perderíamos graus de liberdade na política econômica, com consequências negativas graves para a sociedade. Indo além da superfície, os projetos de lei em discussão no Congresso, não obstante a retórica que os acompanha, de fato põem em risco o grau de autonomia já conquistado pelo Banco Central ao longo dos anos.

Depois da onda inflacionária que inundou os países industrializados na década de 1970, floresceu na academia a tese dos bancos centrais independentes. O debate penetrou nos parlamentos de diversas democracias e, de fato, muitas delas aprovaram leis para conferir autonomia aos seus bancos centrais.

Vale observar que existem dois tipos de autonomia: a operacional e a política. A primeira significa que o banco não depende do tesouro nacional para operacionalizar a política monetária via emissão de títulos. A segunda, por sua vez, estabelece mandatos fixos para os dirigentes do banco com vista a reduzir pressões políticas nas decisões que fixam as taxas de juros no país.

Estudos recentes da Kennedy School mostram que a correlação negativa existente entre independência do banco central e o nível da taxa de inflação de um país se deve ao maior grau de autonomia operacional da instituição. Um banco central habilitado a operacionalizar a política monetária de maneira independente é o fator que levou os países ao controle efetivo das taxas de juros. A liberdade política do banco, baseada em dirigentes com mandatos fixos, não tem relação com o desempenho da política monetária.

Quero dizer que devemos apostar na autonomia operacional do nosso Banco Central, mas deixando de lado a agenda do mercado financeiro de tornar os dirigentes da instituição superpoderosos e indemissíveis. A emancipação política da autoridade monetária significa ignorar os intensos debates sobre a atuação dos banqueiros centrais desde a crise financeira de 2008 e o real alcance da política monetária para estabilizar ou fazer retroceder a inflação.

A realidade é que os bancos centrais modernos têm diversos mandatos que extrapolam seu papel conceitual de ser apenas o executor da política monetária. Quando nosso banco define a taxa de juros do País, está basicamente aumentando ou diminuindo o volume do segundo maior gasto do orçamento público depois da Previdência: a conta de juros. Obviamente, isso tem repercussões fiscais e distributivas de grande impacto na sociedade.

Para além da manutenção do poder de compra da moeda, o Banco Central deve garantir também a eficiência do sistema financeiro, a gestão das políticas cambiais e creditícias, o fomento à concorrência bancária e a emissão e distribuição de moeda. Mais ainda, pode agir dando um empurrão para sacudir a economia – é o que o nosso Banco Central vem fazendo com medidas recentes. E esse acúmulo de atribuições prejudica o argumento da sua soberania política.

Temos de ter claro que os eleitores dos diversos países diretamente afetados pela crise de 2008 têm questionado, justificadamente, as escolhas e ações realizadas por seus bancos centrais desde então, muitos ainda detentores de uma independência política formal. O afrouxamento monetário em larga escala e o socorro às instituições financeiras realizados nos pós-crise produziram grandes efeitos distributivos. Isso levou ao aumento da concentração de renda e gerou protestos contra o favorecimento a grupos de interesse ou super-ricos, sobretudo bancos e grandes empresas.

Os bancos centrais ao redor do mundo tomaram decisões inerentemente políticas à revelia das instituições democráticas e estão sendo chamados a prestar contas e a justificar suas ações. Esse governo que se diz liberal deveria considerar os argumentos de Milton Friedman, que se opunha radicalmente à tese da independência da autoridade monetária ao perceber o perigo de se conceder a algum indivíduo a liberdade para acionar instrumentos tão poderosos como são os de intervenção monetária.

Espero que o Congresso não caia nessa cascata.