Folha de S. Paulo, 18 de novembro de 2000

“Compete à lei federal […] estabelecer os meios legais que garantem à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem […] da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente (…). A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapia estará sujeita a restrições legais, nos termos do parágrafo anterior.”
Constituição Federal, artigo 220, paragrafo 3º, inciso II, parágrafo 4º

Como tem sido demonstrado à saciedade, o cigarro é um dos piores fatores isolados de perda de qualidade de vida, de sofrimento e morte de pessoas. Sem falar, naturalmente, do impacto que essas tragédias produzem nas despesas públicas e privadas.

Quando tomei posse no cargo, reiterei convicção de que assumia o Ministério da Saúde e não o Ministério da Doença. Ou seja, nosso papel fundamental no sistema de saúde é prevenir ou evitar o agravamento das doenças, mais do que correr atrás do prejuízo. Como deixar, portanto, de atuar de maneira firme em relação ao cigarro?

No combate ao vício do tabaco é preciso distinguir duas frentes de ação: a que se situa no lado da oferta e a localizada no lado da demanda. A oferta tem a ver com a produção, a importação e o contrabando de cigarros, bem como com seu preço e as permissões legais para a venda e para a prática do vício. O lado da demanda tem a ver com a renda e a motivação das pessoas para comprar o cigarro.

Em relação à oferta, tivemos até agora duas experiências. Uma que “pegou” pouco: proibição em restaurantes e prédios públicos (de responsabilidade municipal). Outra referente a meios de transportes, que tendeu a “pegar”, como no caso dos aviões. Mas o governo do presidente Fernando Henrique optou por organizar, inicialmente, uma ofensiva pelo lado da demanda, depois de estudar bem a experiência internacional, fazer pesquisas e levar em conta as particularidades do nosso país. E, nesse aspecto, decidiu começar pela forte restrição à publicidade, voltada implicitamente para seduzir jovens para o vício, mediante um projeto de lei enviado ao Congresso.

Como registraram dois pesquisadores do European Surgical Institute, Prabhat Jha e Frank J. Chaloupka, que analisaram os impactos econômicos do controle global sobre o tabaco no relatório de agosto da instituição, “um balanço de 102 países e análises econométricas de faixas de renda mais elevadas concluiu que proibições abrangentes da publicidade do tabaco podem reduzir o consumo do produto. Proibições parciais têm efeito pequeno ou nulo, em face da oportunidade para substituir por outras formas de utilização da mídia”.

É preciso considerar que 90% dos fumantes adquirem o vício na adolescência e que, de acordo com as pesquisas, a publicidade joga um papel, senão único, fundamental, associando o cigarro positivamente à vida saudável, ao esporte, ao sexo e à maturidade.

Note-se que os já fumantes não precisam de anúncios sedutores para permanecer no vício. Ao contrário: 70% deles querem largar o cigarro, mas não conseguem. Eles não têm ilusão a respeito das virtudes do fumo apregoadas pela propaganda enganosa, mas o cigarro é um vício mais difícil de abandonar do que a cocaína e o álcool.

O projeto do governo andou bem na Câmara. Não é por menos: 86% da população manifestou-se, em pesquisa, a seu favor. Agora que o projeto está no Senado, vale a pena retomar alguns tópicos da discussão, analisando as objeções feitas por pessoas de boa-fé e outras de fé nem tão admirável.

Uma primeira objeção tem a ver com doutrinas econômicas, que, se tivéssemos de qualificar, chamaríamos de neoliberais. Por que o governo deveria intervir no mercado de cigarros, se os fumantes conhecem todos os riscos e suportam todos os custos de sua escolha? Esquecem, porém, como sempre, as falhas de mercado que obrigam a interferência governamental: informação incompleta sobre os riscos do tabaco e de adquirir o vício, bem como sobre os custos físicos e financeiros impostos aos não fumantes.

Outra objeção nos diz que é errado controlar a propaganda sem proibir primeiro a produção ou o consumo. Tal proposição é um exemplo notável de escassez de lógica, pois medidas em relação à demanda não excluem providências do lado da oferta.

Além disso, a experiência internacional da batalha contra o cigarro mostra que, sem mitigar a demanda, os resultados da cruzada antitabagista tornam-se decepcionantes. De mais a mais, uma eventual proibição da produção de cigarros só teria o efeito de aumentar a demanda efetiva por filmes de bangue-bangue. Lembremo-nos da “Lei Seca” dos Estados Unidos, a respeito das bebidas alcoólicas, que só fez atiçar a produção clandestina, a economia paralela e o gangsterismo. Com relação ao cigarro floresceria, além disso tudo, o contrabando, mais do que já prosperou até agora.

A propósito, baseados na experiência internacional, os pesquisadores já citados concluíram que, “enquanto intervenções para reduzir a demanda do tabaco são provavelmente bem-sucedidas, medidas para reduzir sua oferta frequentemente fracassam”.

Há ainda uma terceira objeção, segundo a qual a medida é inconstitucional. No caso, faz falta uma leitura atenta e isenta, tanto da Carta Magna quanto do projeto de lei. A Constituição permite ou, mais do que isso, sugere restrições à propaganda do fumo – veja-se a epígrafe. É certo que não prevê a proibição total, mas o projeto tampouco o faz.

Outra objeção, a quarta, é a que, talvez, reúna a maior dose de pessoas com boa-fé. Elas são até contra o cigarro e não simpatizam com sua propaganda, mas temem que as restrições propostas representem um atentado contra a liberdade de expressão e, tanto quanto, ou mais do que isso, abram caminho para uma infinidade de outras restrições. À propaganda de lingerie, por exemplo.

É preciso, porém, compreender que liberdade de expressão, de ideias, crenças, proposições políticas etc. é uma coisa. Pela qual, aliás, tanto lutamos durante os vinte anos de regime autoritário e devido a cuja falta alguns viveram parte deste período, ou todo ele, nas prisões da ditadura ou no exílio (como foi meu caso). Mas liberdade de expressão comercial a fim de fomentar a venda de produtos e o lucro de produtores e distribuidores é outra coisa bem diferente. Tal liberdade obrigatoriamente tende a encontrar um limite no interesse público.

É por isso mesmo que a Constituição, no citado artigo, prevê restrições à propaganda de produtos que afetam ou podem afetar a saúde: cigarros, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, remédios e terapias. Não mais do que isso. Não há nenhum dispositivo constitucional que mencione restrições à publicidade de automóveis ou roupas, por mínimas que sejam, nem de sorvetes ou chocolates, por mais lascivos que sejam seus sabores.

Apesar da insubstância do argumento da liberdade, alguns donos de agências de publicidade, mais interessados em seu faturamento do que na saúde pública, continuam soprando-o nos ouvidos de pessoas de boa-fé, que não examinaram a Constituição e o projeto. Na sequência, surge então uma quinta objeção: não seria necessária nenhuma portaria ou decreto governamental, porque existe a possibilidade de autorregulamentação – o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar). Ah!, então existe o que regulamentar? Reconhece-se a importância disso? Cadê a liberdade de expressão?

De todo modo, embora o Conar seja uma iniciativa importante e já tenha feito boas coisas, de forma alguma o Congresso e o poder público em seu conjunto poderiam ficar de fora do tratamento de um assunto previsto no texto constitucional. Em que país do mundo um órgão corporativo poderia substituir o poder público num tema dessa natureza?

Aliás, note-se que, apesar de toda a caudalosa e antiga propaganda enganosa do cigarro, nunca aquela instituição tomou nenhuma providência a esse respeito.

Mas a argumentação pró-tabagista, como já mencionei uma vez, apresenta-se como uma espécie de sopa de pedras. Cada possibilidade de objeção, mesmo contraditória com outras, transforma-se numa pedrinha jogada no caldeirão. Não importa se o gosto é insosso e o resultado indigesto.

Assim, adiciona-se uma sexta pedra à sopa: o cigarro gera empregos e impostos, logo não convém proibir sua propaganda. (Note-se que os que ganham dinheiro com o tabaco dizem que proibir a propaganda não vai diminuir o consumo e que, portanto, seria inútil proibi-la).

Vamos ser claros: o principal resultado da restrição à propaganda será desacelerar o consumo, o que já representará uma grande vitória. Queda mesmo, só a longo prazo. E, nesse longo prazo, ninguém vai guardar na poupança o que deixará de gastar em cigarros. Vai, mesmo, gastar noutra coisa, que terá de ser produzida, gerando ou mantendo, também, empregos e impostos noutros setores da economia.

Uma sétima pedra: a proibição e a restrição à propaganda fomentarão o contrabando. Ora, o contrabando vem crescendo assustadoramente nos anos recentes, apesar da queda real do preço do cigarro nacional e de todas as verbas de publicidade gastas para estimular seu consumo. Além disso, não caberia persistir num erro (a publicidade enganosa) para justificar um delito (o contrabando). O combate a este último precisa ser mais amplo e profundo.

Hoje em dia o combate é feito e de forma tenaz, mas quase isolada, pelo doutor Everardo Maciel, secretário da Receita Federal. Para ser mais eficaz, no entanto, o combate tem de ser estendido a outras instituições, esferas do governo e ações de diplomacia e comércio exterior. Afinal, hoje, a origem do cigarro contrabandeado não se limita mais à tradicional fronteira e aos contêineres paraguaios, mas envolve também a Guiana e o Uruguai, país que, lamentavelmente, está fazendo sua estreia numa prática até há pouco indigna de seu desenvolvimento econômico e cultural: o contrabando organizado, da produção ao comércio.

Enfim, haveria ainda muito pano para manga no debate sobre cigarro e o projeto do governo. Vamos guardá-lo para outras rodadas, mas não sem antes reiterar duas perguntas que temos feito desde que o referido debate se acirrou: o que responde um defensor da indústria e da publicidade do fumo a seu filho adolescente quando ele lhe pergunta se seria bom começar a fumar? Certamente lhe dirá que não! Por que, então, defender um esquema destinado a viciar os filhos dos outros?