Sistema eleitoral está no topo da lista de problemas perenes de nossa democracia, exigindo enfrentamento imediato

José Serra, O Estado de S.Paulo
23 de dezembro de 2021 | 03h00

O Natal é depois de amanhã e o Ano Novo está próximo. Muitos aproveitam para um retrospecto ou para alinhar propósitos. Prefiro falar do futuro, um grande desafio, já que em nosso País nada é hoje previsível nem garantido, e no próximo ano passaremos por uma troca geral de poderes no Executivo e no Legislativo.

Tendo de enfrentar em nosso dia-a-dia uma sucessão de impasses, é impossível planejar bem o amanhã quando não se sabe como terminará o dia, seja do ponto de vista sanitário, de segurança jurídica ou de segurança econômica. E isto, mesmo sobre questões consensuais, como a urgência de adotar um programa de renda básica ou de aumentar a qualidade, a eficiência e a honestidade do serviço público.

Incerteza sobre o futuro não justifica inação. Temos um conjunto de problemas permanentes que, enquanto não forem reconhecidos e bem debatidos, jamais serão enfrentados, negociados e compactuados. O contexto de uma campanha presidencial pode ser ocasião para essa reflexão que, infelizmente, não está sendo encarada pelas candidaturas já anunciadas.

Tenho salientado, neste espaço, a natureza multidimensional da crise que nos atinge – e que o povo brasileiro está enfrentando com coragem – diante da omissão de parte relevante de nossas instituições. O cerne da crise é de natureza política, e a ela se sobrepõe uma crise de descontrole da política econômica, agravada pelos efeitos da pandemia de Covid-19.

Os efeitos imediatos e a evolução da Pandemia teriam sido mitigados, com alcance muito mais decisivo, se o combate à sua disseminação não fosse transformado em anátema e até mesmo demonizado pelo governo. O equilíbrio fiscal e a retomada do crescimento, herdados do governo Temer, não teriam sido tão negativamente afetados pela restrição forçada das atividades produtivas, se a conduta da política econômica não fosse tão equivocada.

Sem uma drástica retomada de rumo pelo governo, continuaremos a enfrentar inflação alta, juros elevados, endividamento sem controle, retrocesso do investimento, cujo somatório redunda em castigar o povo brasileiro, especialmente os setores mais vulneráveis. Sem uma reviravolta na interferência presidencial sobre o combate à Pandemia que, ao fim e ao cabo, redunda em abrir as portas para a invasão de novas variantes de alto risco da Covid-19, não reverteremos seus impactos negativos ascendentes sobre a atividade econômica e sobre as defesas imunológicas de cada um dos brasileiros.

Está, em primeiro lugar nas mãos do governo federal, voltar à política econômica para reorientá-la no rumo da estabilidade, da recuperação da confiança e do investimento. E isto não é viável já que nossas instituições fundamentais têm-se orientado por agendas divergentes, e muitas vezes incompatíveis, que acabam se anulando reciprocamente.

Há quem aponte, como causa da crise política, um conflito de interesses de tal modo grave, que tornou-se impossível adotar as reformas consideradas essenciais, como a simplificação e a maior eficiência do regime tributário, a modernização dos serviços públicos o ou a limitação ao estatismo.

Ao contrário, nosso Congresso tem aprovado um número alto de projetos de lei. As emendas constitucionais tornaram-se quase corriqueiras e efetuadas em poucos dias. Executivo e Legislativo nem sempre têm tido dificuldade em aprovar legislação apoiada pelo governo, por sua base parlamentar e pela oposição. Mas, como regra, poucas vezes coincidem com os interesses e necessidades vitais dos cidadãos.

Isto tem-se manifestado em profunda insatisfação popular e em desconfiança do cidadão com respeito a sua representação política.

Já que uma democracia representativa baseia-se no princípio de que a legitimidade das decisões de interesse coletivo devem ser tomadas por representantes eleitos pelos cidadãos, e refletir sua vontade, é necessário que algo de muito errado esteja ocorrendo na maneira como os representantes são escolhidos pelo eleitor. Simplesmente, o eleitor não sabe, nem pode saber para quem vai seu voto, e o eleito não sabe bem de onde vêm os seus.

O sistema eleitoral – de voto proporcional em lista partidária aberta – constrói um muro intransponível entre o eleitor e seu representante, já que, segundo estimativas recentes, mais de 75% dos mandatários dependem dos votos de um número indeterminado de candidatos para eleger-se. Em termos práticos, o cidadão não sabe a quem recorrer, e seus representantes sentem-se livres para representar os interesses que bem lhes aprouver.

Se aceitarmos a premissa de que, com políticas governamentais adequadas, nas dimensões econômica, sanitária e social, o impacto da pandemia sobre o sistema produtivo não teria fugido do controle.

Devemos convir que o sistema eleitoral está no topo da lista de problemas permanentes de nossa democracia, exigindo enfrentamento imediato. Temos, portanto, razões para demandar dos candidatos ao nosso voto uma definição clara a respeito do seu compromisso com a necessidade de reabrir o debate sobre representação proporcional ou majoritária.

Porque o futuro não espera.

*SENADOR (PSDB-SP)