A miopia de eleitores e políticos está por trás da tendência aos déficits fiscais crônicos. A PEC Kamikaze é um exemplo recente.

José Serra, O Estado de S.Paulo
14 de julho de 2022 | 03h00

Embora com grandes diferenças entre políticos pautados pelo interesse público e aqueles que buscam o poder como um fim em si mesmo ou para fins particulares, todos precisam de mandato: é por meio dele que se implementam políticas públicas, entendidas, num sentido abrangente, como tudo o que o Estado decide fazer ou não. Os eleitores esperam baixos índices de inflação e desemprego, provisão de infraestrutura e serviços públicos de qualidade, adequado funcionamento de mercados e redistribuição de renda – dos mais ricos para os mais pobres, entre outros. O Estado pode muito.

Em regimes democráticos, políticos chegam aos cargos públicos mediante eleições. Processo pelo qual cidadãos, em tese, escolhem programas de governo e avaliam o desempenho de políticos. Os eleitos precisam dar atenção às preferências dos eleitores. Se mal avaliados, dificilmente terão (nova) chance.

Essa descrição parece simples, mas os desdobramentos de um sistema democrático são complexos por razões que dizem respeito aos eleitores e aos políticos. Uma das consequências bem estudada pelas ciências sociais é a tendência, em democracias, aos déficits fiscais estruturais ou ao endividamento público crônico: o Estado gasta sistematicamente mais do que arrecada. Ao assumir dívidas, é como se o setor público transferisse renda entre gerações: a conta de hoje será paga num futuro qualquer, não raro por aqueles que não se beneficiaram do gasto. Um convite a excessos, não?

Pense, por exemplo, num sistema previdenciário que permita aposentadorias precoces sem base contributiva suficiente da parte dos beneficiários. A aposentadoria do avô será paga pelo neto, que dificilmente usufruirá do mesmo direito. Nesse contexto, a gestão de recursos públicos em qualquer regime político está, por si só, fadada a certas dificuldades. Uma delas é conhecida como o dilema dos comuns (common-pool problem). Em geral, uma política pública beneficia certo grupo de indivíduos, mas é custeada tributando-se toda a sociedade. É dizer: benefícios concentrados com custos dispersos. Em outras palavras, os beneficiários recebem mais do que sua participação no custeio da respectiva política pública. Naturalmente, todos os segmentos sociais são orientados por esse cálculo, o que engendra uma dinâmica perversa: uma busca incessante por benefícios a serem custeados pela coletividade, presente e futura. O que é racional na perspectiva de grupos localizados torna-se completamente disfuncional para a sociedade, em termos agregados. Neste jogo de empurrar toda ou parte da conta, alcançam-se níveis elevados de endividamento público.

Nas democracias, acrescente-se outro conjunto de problemas derivados do que a literatura denomina ciclo eleitoral. Tendemos a valorizar mais o presente que o futuro. É a dificuldade tão humana de evitar consumir hoje em prol da poupança que facilitará o amanhã. Enquanto eleitores, não somos muito diferentes: nosso bem-estar imediato costuma ter mais peso em nossa decisão de voto do que a avaliação dos efeitos acumulados de uma política pública ao longo do tempo. Se o presente nos parece satisfatório ou menos ruim, será maior nossa disposição a aprovar os atuais governantes.

Políticos sabem disso e padecem de tentações envolvendo a política fiscal: as consequências presentes de suas escolhas tendem a ganhar mais importância do que as futuras, quando eles, quem sabe, serão meras fotos numa galeria. Frequentemente, do ponto de vista do governo, o equilíbrio fiscal perde valor se não conduz à reeleição. A miopia de eleitores e políticos está por trás da tendência aos déficits fiscais crônicos. Exemplo recente: a PEC Kamikaze, distribuindo dezenas de bilhões às vésperas das eleições.

Para atenuar tais problemas, arranjos institucionais que restringem a discricionariedade de políticos têm sido propostos a fim de garantir alguma prudência na condução da política fiscal. Ainda hoje, as medidas mais adotadas abrangem algum conjunto de regras fiscais. No caso brasileiro, destacam-se a Emenda do Teto de Gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), bem como dispositivos espalhados pela Constituição de 1988. Porém, acumulam-se evidências de que regras fiscais, mesmo as bem desenhadas, estão sujeitas ao cálculo eleitoral dos governos: se os ganhos ao violá-las superam eventuais custos, elas deixam de ser restrições. A PEC Kamikaze afasta todo o arcabouço fiscal brasileiro, com amplo apoio do Congresso Nacional.

Neste ano eleitoral, empenharei esforços para preservar os pilares da boa governança, como sempre fiz ao longo da minha vida pública. Os políticos deveriam se pautar pelo interesse público, instituindo ou preservando instâncias técnicas e políticas que ampliem a transparência de toda a política fiscal e aumentem os custos – políticos e econômicos – de escolhas irresponsáveis. Quanto mais difícil for para um governo promover políticas inconsistentes, melhor para a sociedade. O viés deficitário das eleições não pode jamais ser motivo para descalabros institucionais, sobretudo no campo fiscal.

*SENADOR (PSDB-SP)