Um Congresso mais poderoso, mas cada vez mais fragmentado, não é o que o País deseja

O Estado de S.Paulo

13 de junho de 2019 | 03h00

A maioria dos estudiosos da política brasileira assume a hipótese seminal de Sérgio Abranches de que a forma de governo vigente no Brasil é o “presidencialismo de coalizão”. Esse arranjo não se deu por acaso, mas responde a certas características estruturais da política brasileira e, mais ainda, de nossa formação histórica e social: o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo e a representação proporcional. Tudo combinado!

Embora a definição utilizada pelos estudiosos possa variar em relação à original, há um elemento constante nas várias interpretações. Diante da fragmentação partidária derivada de nosso processo eleitoral, os presidentes eleitos não dispõem de base parlamentar “automática” com a qual possam implementar suas propostas de governo. A forma de garantir a governabilidade seria a formação de coalizões amplas – em geral pouco consistentes ideologicamente. Apesar dessa inconsistência, elas seriam capazes de sustentar o governo e, talvez, lhe permitir alguma direção programática, sem a qual a própria coalizão não sobreviveria.
Na verdade, o presidencialismo de coalizão é um diagnóstico sobre a insuficiência de nossas instituições políticas. Trata-se de reconhecer uma circunstância indesejada, mas de grande peso na nossa trajetória política e na nossa formação como sociedade.

Tirar o País da contingência do presidencialismo de coalizão requer esforço político enorme para alterar as práticas e crenças mais enraizadas de nossa vida pública. Adotar o parlamentarismo clássico seria um dos desafios para a superação desse modelo. Outro tipo de ação seria aperfeiçoar nosso debilitante sistema eleitoral, que, a cada eleição, fragmenta adicionalmente o Congresso e torna cada vez mais penosa a composição de maioria parlamentar.
Tenho lutado pela remoção destes entraves históricos: o presidencialismo e a eleições proporcionais no modelo atual. Defendo substituí-los por um parlamentarismo responsável, estruturado sobre bases partidárias que resultem do voto distrital misto. Este sistema envolve regra proporcional, mas que, diferentemente do atual, privilegia a maior representatividade e induz à formação de maiorias programáticas, sem impedir a presença parlamentar de minorias relevantes.

Na presente conjuntura, percebe-se que o poder do presidente tem sofrido erosão adicional, o que dá forma a uma espécie de parlamentarismo de fato, mas que não aumenta a responsabilização do Congresso, na medida em que crises e impasses não põem em risco os mandatos dos parlamentares, característica essencial de um parlamentarismo consequente. A resultante é o conflito permanente, uma espécie de “presidencialismo de colisão”!

Desde a redemocratização, considera-se que o presidente da República, embora com dificuldades para a formação de maiorias, detém importantes recursos políticos que lhe garantem grande peso na agenda do Congresso. A prerrogativa de editar medidas provisórias (MPs) e de nomear cargos públicos, o poder de veto, o rol de iniciativas privativas do chefe do Executivo e o poder de liberação de emendas orçamentárias comporiam, por assim dizer, o arsenal do Executivo para disciplinar a fragmentação partidária.

No entanto, por motivos vários, esses instrumentos de controle estão sendo enfraquecidos ou simplesmente eliminados.

Veja-se, por exemplo, a frequência crescente com que vetos presidenciais vêm sendo derrubados. Até o primeiro mandato de Dilma Rousseff, a derrubada de vetos era tabu. A simples ameaça de derrubada levava a dura resposta do Executivo. O resultado é que pouquíssimos vetos foram derrubados desde 1988 até 2015. De 2016 para cá, tudo mudou. Apenas na penúltima sessão do Congresso, nada menos que 41 dispositivos foram rejeitados.

Além disso, vem aumentando a frequência de emendas constitucionais (EC), sobre as quais o poder de veto não incide. De 1989 a 2008, foram promulgadas 57 ECs, média de 2,9 por ano (sem contar as emendas de revisão); de 2009 a 2017, foram promulgadas 42 ECs, média de 4,7 por ano. Isso sem contar a EC do orçamento impositivo, já aprovada e na bica de ser promulgada, que enfraquecerá um dos elementos de controle do Executivo: a liberação de emendas parlamentares.

A mesma tendência de redução do poder presidencial se vê na proposta de emenda que tramita com boas chances no Congresso e que pretende limitar a cinco o número de MPs por ano.

Tudo somado, estamos assistindo à construção de um novo sistema de governo: um parlamentarismo branco, desorganizado. Trata-se de um desdobramento indesejável. As mudanças que o Congresso tem conseguido impor elevam seu poder como corporação, mas estão longe de organizá-lo como fórum bem qualificado de decisão e encaminhamento das pautas majoritárias na sociedade. Um Congresso mais poderoso em suas atribuições, mas crescentemente fragmentado, não será capaz de gerar os difíceis consensos que a grave situação econômica exige.

Uma consequência poderá ser o aumento do conflito entre os poderes – o presidencialismo de colisão – sem que haja alternativa de dissolução do Parlamento, seguida por uma nova composição capaz de seguir um programa majoritário.

Além disso, o elevado grau de conflito sem mecanismos de solução de impasses tende a ampliar a chamada judicialização da política, fenômeno pelo qual as questões mais complexas e controversas deixam de ser resolvidas politicamente e passam à esfera de decisão do Judiciário, erigido à condição de poder moderador. Um resultado também indesejado.

Precisamos de um parlamentarismo de verdade, capaz de formar maiorias sólidas oriundas do voto distrital misto. Com esforço, poderemos fazer no segundo semestre de 2019 esta verdadeira revolução política, que prevaleceria já nas eleições de 2022 e passaria a valer em sua plenitude a partir de 2023.