Folha de S. Paulo, 25 de janeiro de 2006
Vejo uma cidade que celebra não apenas o encontro de culturas diversas mas também de tempos históricos distintos
O mito das cidades como antro de corrupção dos costumes e da vontade remonta ao Velho Testamento. A cada feriado, por exemplo, ele, de algum modo, se atualiza, quando uma grande parte da população de São Paulo ruma ao litoral ou ao interior. A cidade fica quase deserta. Os que permanecem estranham o seu silêncio, o seu sono, a sua largueza. De hábito apinhada de gente a disputar cada metro quadrado, flagramo-la em solidão, quase abandonada, sem ter com quem sair; cão doméstico longe de seus donos, mesa posta para o filho que não vem. Dizem então: “Ah, antes fosse sempre assim!”. E por que seria mais bonita a urbe acabrunhada, livre dos que a fazem ser o que é? Nossa natureza mais pródiga é nossa gente.
Tenho relido com interesse, nestes dias, os poemas de “Paulicéia Desvairada”, de Mário de Andrade, que dá nome à maior biblioteca da cidade. Não os revisitava desde o antigo colegial -hoje “ensino médio”. Os que já tiveram esse prazer sabem as palavras ora álacres, doces e amorosas, ora amargas e contrariadas com que o poeta via a sua cidade nos primeiros anos do século passado! Mário conciliava o espírito inconformista -e, portanto, otimista- com certo pessimismo culto, gentil, refinado, que conferia à sua poesia um sotaque único.
Num texto chamado “Tu”, referindo-se à cidade, escreve: “Costureirinha de São Paulo / ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica, / gosto dos teus ardores crepusculares, / crepusculares e por isso mais ardentes / bandeirantemente!”. E, nos dois versos seguintes, um achado: “Lady Macbeth feita de névoa fina / pura neblina da manhã”.
Mário de Andrade capta a diversidade de São Paulo, empresta-lhe até certa palpitação erótica, personalizando-a, faceira, madura e quente. Já é um clichê exaltar esta nossa raça pura de tantas misturas, que nos faz ser o que somos e, em boa medida, nos torna aptos a ser o que ambicionarmos. A alusão à ambígua personagem shakesperiana é feliz. Lady Macbeth encarna a virtude obsessiva e perde o senso de limite e razão: desarvora-se. Mas não a nossa, “feita de névoa, de pura neblina da manhã”, quase evanescente.
A utopia da fuga da cidade está inscrita na história da literatura e do pensamento. Roma era considerada tão excessiva que Virgílio chegou a escrever obras exaltando as graças da vida rural. Uma parte do Iluminismo flertou abertamente com a idéia do homem puro, desde que longe da cidade.
Aqui mesmo, entre nós, Cláudio Manuel da Costa e Tomaz Antonio Gonzaga ecoaram os pastores da Antiguidade, poetizando cenários bucólicos para as musas-pastoras. O livro mais chato do formidável Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”, é justamente aquele em que ele menos exercita o seu maior talento: escrever paisagens humanas. Em todos os casos, a cidade era acusada de conspurcar o “bom selvagem” -uma invenção, vejam só, citadina.
Não quero usar a celebração dos 452 anos de São Paulo para listar ações da prefeitura que criam o espaço de humanização da convivência e ampliam as oportunidades econômicas para que seus habitantes possam ser donos de seu destino, conduzindo-o em vez de por ele serem conduzidos.
Quem transita em qualquer ponto da cidade vê presente, por meio de obras físicas (necessárias, urgentes, tardias), o poder público municipal. Orgulho-me menos, no entanto, dessas obras, que devemos aos moradores da cidade, do que do já aludido processo de humanização do serviço público na saúde, na educação, na assistência social, na reurbanização que devolve o Estado de Direito àqueles que o tiveram seqüestrado pelo populismo, pela demagogia, pela prevaricação, pelas obras eleitoreiras e até pelo crime.
Não ignoro certa fama que me precede e que me acompanha: de detalhista, perfeccionista, talvez intolerante com o erro, certamente irascível com o descumprimento de um dever. Esses defeitos, eu os assumo todos. Estou há muitos anos na política. O homem público lida com recursos que não lhe pertencem. Em vez de me dizerem que algo não pode ser perfeito, prefiro que se tenha a perfeição como norte e como meta. Ajo assim em respeito às muitas Marias e aos muitos Joões que, a esta hora, embalam filhos e sonhos; procuram driblar um destino que parecia certo, para viver uma outra e improvável história; apostam, muitas vezes, o pouco que têm para perseguir um anseio.
A cidade pode e deve ser fonte de oportunidades e realizações. Neste aniversário, parabéns a todos nós, população de São Paulo. A sede da prefeitura fica perto do Pátio do Colégio, nosso marco fundador. Penso nos jesuítas riscando na areia algumas das primeiras letras escritas nas Américas para um homem do Novo Mundo. Vejo uma cidade que celebra não apenas o encontro de culturas diversas mas também de tempos históricos distintos. Assim criamos uma civilização. A civilização brasileira. Que pede que a respeitem.