No ano passado, falei dos Natais do meu tempo de menino. Também comemorávamos, é certo, a passagem de ano; fazíamos os nossos votos de “Bom Princípio”. Não me lembro quando a palavra “Réveillon” entrou no meu repertório. Sei que eu já não era mais só o menino feliz de sua aldeia.

A comemoração do Ano Novo tinha uma particularidade familiar que me agradava. O dia 1º de Janeiro era o único do ano em que o Mercado Municipal não abria e, portanto, o único em que pai, avô e tios não trabalhavam. Por isso, diferentemente do que ocorria no Natal, eles não precisavam dormir cedo na véspera, o que me permitia ficar acordado até depois de meia-noite e curtir a virada do ano.

O principal evento, no bairro operário em que vivíamos, não vinha de festas em clubes ou em restaurantes, mas do rádio: a transmissão da corrida de São Silvestre, promovida pelo jornal A Gazeta Esportiva, cuja sede ficava na avenida Cásper Líbero, no centro de São Paulo. A disputa, que já atraía corredores de todo o mundo, terminava perto da meia-noite, o que aumentava a empolgação dos ouvintes da cidade, animados por aqueles formidáveis locutores da época. Na família, torcia-se sempre para que um brasileiro ou um italiano vencesse – ou, ao menos, fizesse bonito. Mas, na minha memoria real ou imaginaria, o grande vencedor chamava-se Emil Zatopek, um tcheco veloz, resistente e branquelo, famoso em todo o mundo.

Não havia gente bebendo ou dançando nas ruas. Lembro-me dos sons dos busca-pés, que voavam baixo, como se perseguissem os pés das pessoas e dos caramurus – artefatos cujo projétil de pólvora explodia nas alturas de maneira muito objetiva, sem chuva de estrelas. E também havia o alarido das crianças e adolescentes, com minha ativa e entusiasmada participação. Batíamos com cabos de vassoura ou barras de ferro nos postes de luz, altos, cilíndricos e pintados com tinta escura como piche. A percussão era razoável. As ondas de som lembravam, ainda que imperfeitamente, as badaladas de sinos. Sólidos e largos, eles resistiam solenes e inabalados à alegria de gerações.

Meu pai dava uma contribuição particular às comemorações sonoras: alguns tiros para o ar à meia-noite em ponto, com um revólver pequeno, que escondia no guarda-roupa e que só era usado uma segunda vez no ano caso o Palmeiras vencesse um campeonato. Minha mãe detestava essa iniciativa por medo de algum acidente. Eu a rejeitava por outro motivo. Achava que as balas, ao caírem, poderiam machucar alguém. Anos depois, quando estudei física, constatei que meu temor não era infundado. Na trajetória de volta, puxada pela gravidade, em cada altura determinada, a bala tem o mesmo poder letal que na subida!

Não se fazia a ceia da véspera. Quando muito, sanduíches acompanhavam o vinho de São Roque ou a cerveja nas casas que recebiam os que chegavam para desejar um “Bom Princípio”. Champanhe era coisa de um outro mundo. Para as crianças, guaraná e doces.

No dia seguinte, o almoço na casa da avó competia com o do Natal em comida, cantoria, dança e baralho. A fartura da mesa estava acima das possibilidades da renda média da família graças ao ânimo gastador que a data despertava e, acima de tudo, porque o pessoal trabalhava no Mercadão, o que permitia obter carnes e frutas estrangeiras de qualidade – maçãs, peras e uvas – a preços camaradas. Às canções do Natal, era acrescentada aquela do “Adeus, Ano Velho”, que desejava “muito dinheiro no bolso e saúde pra dar e vender” no “ano que vai nascer”… Desejos bastante objetivos e atuais, como se sabe.

Há quem se incomode com essas datas festivas porque marcadas pelo consumismo, por certa esfera de alegria compulsória, com seus inevitáveis clichês. Entendo a natureza da crítica, mas penso, de novo, no tempo de eu ser menino, nos meus anseios, nas minhas esperanças, e vejo, como escreveu Drummond nos seus Resíduos, não só o “meu queixo” no queixo dos meus descendentes. Também reencontro a luz daquela esperança, sem a qual nos diminuímos. E isso nos faz pertencer à grande comunidade dos homens.

Feliz Ano Novo para todos!