Não se pode executar a despesa nova sem a aprovação de medidas de compensação.

José Serra – O Estado de S.Paulo
08 de outubro de 2020 | 03h00

O governo federal enviou a proposta orçamentária para 2021 sem dizer como pretende financiar o novo programa anunciado pela equipe econômica: o Renda Brasil. Curiosamente, esse programa nasceu, morreu e deve ressuscitar após manifestações desencontradas de lideranças do Executivo, até mesmo do presidente da República, tornando o cenário fiscal mais incerto. Certo mesmo é que o País precisa de um programa social de renda mínima, com responsabilidade fiscal e boa governança, para os brasileiros mais afetados pela pandemia.

Hoje presenciamos a subida a todo o vapor da dívida pública em direção à relação de 100% com o produto interno bruto (PIB). Assim, o País, no final do ano, deverá ao mercado de títulos públicos o equivalente ao que produzirá em termos de bens e serviços. Na verdade, esse número estaria longe de representar algo catastrófico caso os gastos públicos no Brasil tivessem qualidade, o que não ocorre. Importa mais a trajetória de crescimento da dívida do que a sua relação com o PIB, afinal, estoque e fluxo são coisas distintas.

Claro está que não nos podemos endividar como se a injeção de gasto público na economia não tivesse custos e limites. A gestão fiscal daqui para a frente não poderá ser tocada na base do improviso e “no susto”. Qualquer programa novo deve ter como base um dos princípios mais relevantes de uma República: a responsabilidade fiscal.

A agenda social em discussão no Congresso, a fim de se criar um programa de renda mínima, deve respeitar na ponta do lápis os dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial o artigo 17, segundo o qual as despesas permanentes devem ser fiscalmente compensadas por aumentos de receita ou redução de outros gastos também permanentes. Mais: não se pode executar a despesa nova sem que sejam aprovadas medidas de compensação. É o que está na lei e é o que deve ser feito.

É importante que todas as despesas obrigatórias do orçamento federal passem por avaliações periódicas, de modo que sejam feitos ajustes que tornem os programas mais eficientes, eficazes e efetivos. Ainda que o artigo 17 seja respeitado na fase de implementação de uma nova agenda social, não se pode achar que despesa obrigatória é eterna e blindada de avaliações sistemáticas.

Até aqui podemos dizer que o novo programa almejado pela equipe econômica – o Renda Brasil – deve ser criado com transparência em relação às suas fontes de custeio, inclusive com a revisão dos gastos de programas atuais, e com um desenho institucional que dê prioridade a revisões periódicas dos seus resultados. Naturalmente, a função fiscalizatória do Congresso o atrai para esse campo de avaliação, com a devida ajuda do Tribunal de Contas da União, que tem um time de auditores altamente qualificados.

Mais ainda, o teto de gastos também deve ser observado no processo de criação do Renda Brasil. É sabido que o Parlamento aprovou a Emenda Constitucional 95/2016 com a finalidade de estabelecer limites apertados para a taxa de crescimento do gasto público, com base no IPCA. Com a queda da inflação e o crescimento das despesas da Previdência, que representam mais da metade do teto de gastos do Poder Executivo, o espaço fiscal deve nortear a criação do Renda Brasil.

Diante desse quadro, o Congresso Nacional pode assumir a iniciativa de estabelecer uma nova agenda social, caso a estratégia do Executivo seja passar a bola para o Parlamento. Assim, será melhor para o País que o Congresso aprove um programa de renda mínima delegando ao Executivo a definição dos valores dos benefícios, juntamente com as medidas de compensação. E, nesse sentido, há projetos tramitando. A razão é que o Executivo conta com melhores condições de revisar o Orçamento em busca dos recursos necessários para financiar a nova agenda social.

A lei que criar o novo programa deve também apresentar dispositivos que obriguem o governo a revisar periodicamente o programa, seguindo as boas práticas de gestão adotadas por países avançados em matéria fiscal, como o Reino Unido e a Austrália. Nestes, os programas governamentais são sempre revisados para melhorar a alocação dos recursos nos orçamentos públicos.

Essa ideia da revisão periódica dos gastos públicos parece simples, mas no Brasil ela vem sendo ignorada de forma desconcertada. Em 1998, por exemplo, participei do governo que introduziu na Lei 8.742/1993, que regulamenta os Benefícios de Prestação Continuada, um dispositivo para exigir a sua revisão a cada dois anos. Mas esse dispositivo tem sido solenemente ignorado pelos órgãos de controle e de execução das políticas públicas.

A covid-19 tem revelado a importância da responsabilidade fiscal para os próximos anos. As lideranças do Legislativo e do Executivo precisam atuar de forma conjunta para estabelecer um programa de renda básica que socorra a parcela mais vulnerável da sociedade sem perder de vista a responsabilidade fiscal e a boa governança pública. Não vejo incompatibilidade necessária entre esses dois objetivos.

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SENADOR (PSDB-SP)