O Estado de S. Paulo,  14 de dezembro de 2008

São Paulo recebeu, na primeira semana de dezembro, o prestigioso seminário da Urban Age Conference, um projeto que tem por objetivo encontrar soluções para as megacidades globais, como Nova York, Londres, São Paulo e Johannesburgo. Trata-se daqueles núcleos irradiantes de redes financeiras, comerciais, de serviço e de cultura que mais contribuem para o funcionamento das operações financeiras transnacionais. O projeto trata do urbanismo realmente existente, que não pode ser compreendido apenas a partir das idéias dos urbanistas, dos interesses políticos ou da cobiça dos incorporadores.

As quatro áreas fundamentais de pesquisa do Urban Age, bem explicitadas por Ricky Burdett e Philip Rode (professores da London School of Economics and Political Science), convergem de maneira surpreendente com algumas das linhas de ação que desenvolvi com minha equipe à frente da Prefeitura de São Paulo e do governo do Estado. De particular importância para mim, como economista, como chefe do Poder Executivo e sobretudo como filho de imigrantes, é a primeira questão, relativa ao impacto da produção e do trabalho sobre a cidade e a vida da população.

Essencial para compreender São Paulo é também o caráter paradoxal e altamente diferenciado das cidades globais na concepção de Saskia Sassen (socióloga e economista americana) como o “locus de produção para os setores econômicos mais avançados”, recobrindo, portanto, “a infra-estrutura de atividades, firmas e ocupações – de transporte de carga, manutenção técnica e limpeza – necessárias para operar a economia corporativa mais avançada”, cujo “processo completo de produção inclui ocupações não especializadas e infra-estruturas diversificadas”.

Dispersão e adensamento, jovens profissionais globais e mão-de-obra informal, moradias sofisticadas e loteamentos ilegais, tudo isso convive por definição nas cidades globais e é isso que torna essencial, para São Paulo, compartilhar as experiências e análises proporcionadas pelo Urban Age.

MAPA DOS DESAFIOS

Tendo isso em mente, vejamos quais são, a meu juízo, os principais desafios postos pela Região Metropolitana de São Paulo com relação a alguns dos eixos de pesquisa do Urban Age. Comecemos pelo impacto da produção e do trabalho. Aqui, as migrações são princípio, meio e fim. Desde a 1ª Grande Guerra, a Capital conheceu a mais rápida taxa de crescimento dentre as maiores regiões urbanas do mundo. E a imigração, sobretudo doméstica, respondeu por quase 60% do crescimento entre 1940 e 1970. As migrações reintroduzem constantemente o enorme impulso de energia humana que, por um lado, permite acelerar o crescimento econômico sem pressões inflacionárias insuportáveis e, por outro lado, exponencia os problemas de infra-estrutura urbana. Para enfrentar esse desafio, é preciso manter a capacidade de investimento a fim de preservar empregos e diminuir os custos tanto pessoais como corporativos causados pelo congestionamento.

Por essa razão temos dado total prioridade ao transporte coletivo de massa e promovemos a integração entre as redes municipal (ônibus) e metropolitana (metrô, trens urbanos e, proximamente, VLT (veículo leve sobre trilhos). Isso vai diminuir significativamente o custo do transporte em termos de tarifas, tempo e conforto para a população trabalhadora.

O desafio resultante dos impactos dos projetos habitacionais e urbanísticos sobre as comunidades e sua capacidade de integração vem sendo enfrentado em três direções: a recuperação do espaço público, os projetos habitacionais, que buscam evitar a segregação do espaço urbano e sua conseqüente exclusão social, e a regularização da propriedade das moradias.

Quanto à questão dos efeitos da vida pública e dos espaços urbanos sobre o cotidiano dos cidadãos, ela apresenta o desafio que está na raiz de todos os demais e sugere uma direção possível para sua solução. Uma cidade global como São Paulo apresenta um problema central de governabilidade: a dissociação entre a autoridade municipal e a origem dos desafios, que são de natureza metropolitana. No Brasil não existem instrumentos metropolitanos para a solução desses problemas. Além disso, há uma sub-representação política das regiões metropolitanas nos Legislativos estaduais e no Congresso Nacional.

 

A MAGNITUDE DA CONTA

Na ausência de uma autoridade reguladora e executiva metropolitana, e devido à escassez de recursos próprios, a cidade de São Paulo e a sua região metropolitana ficariam sufocados pela magnitude dos problemas, caso não contassem com os investimentos do governo do Estado.

Para responder a isso, foi possível direcionar para a Grande São Paulo e duas outras regiões metropolitanas do Estado, de Campinas e Santos, quase a metade (46%) de todos os investimentos do governo estadual em transportes – incluindo o metrô e os trens metropolitanos – obras viárias como o Rodoanel, as grandes marginais e os acessos às grandes estradas que ligam com o resto do País e o interior, além dos investimentos em saneamento e habitação.

Mas essa participação do governo estadual está longe de ser suficiente, devido à inadequação do sistema tributário brasileiro no que diz respeito às grandes cidades. O Fundo de Participação dos Municípios, de responsabilidade federal, que transfere para as cidades quase um quarto das receitas do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados, minimiza as bases territoriais de coleta desses impostos e, ao mesmo tempo, supõe constante qualquer população acima de 160 mil habitantes. Em outras palavras, uma cidade com 11 milhões de habitantes, como a capital paulista, recebe, por conta da população, o mesmo montante que uma cidade de 160 mil habitantes. O caso é particularmente dramático: de cada US$ 10 de impostos pagos por um cidadão médio paulistano, apenas US$ 1,5 fica com a prefeitura. US$ 2 vão para o governo do Estado e US$ 6,5 para a União.

Existe um terceiro fator negativo: no Brasil, como sabemos, o Legislativo é eleito pelo sistema proporcional com lista aberta, num único distrito que corresponde a toda a base territorial representada. Assim, o Estado de São Paulo elege 70 deputados federais e 94 deputados estaduais, num distrito que inclui todo o eleitorado do Estado, ou 27 milhões de eleitores. Na capital também, 55 vereadores são eleitos num megadistrito eleitoral de mais de 8 milhões de eleitores.

Tipicamente, enquanto as cidades do interior tendem a se agregar em torno de um pequeno número de candidatos a deputado, mais conhecidos entre as suas populações, a região metropolitana pulveriza seus votos entre muitos candidatos, que não se elegem. Como conseqüência, embora a Grande São Paulo concentre 50% dos eleitores, mal consegue eleger 25% da representação legislativa, tanto estadual quanto federal. Isso dilui desproporcionalmente o peso e a influência da área metropolitana e da cidade de São Paulo na distribuição de recursos estaduais e federais, em favor de pequenas e médias cidades, onde os ganhos políticos e eleitorais se adquirem com maior facilidade.

 

MUDANÇAS NECESSÁRIAS

Não tenho uma visão pessimista sobre o futuro das grandes metrópoles brasileiras, mas as mudanças exigirão bastante tempo. Para começar, teremos de ser bem-sucedidos nos três planos que afetam profundamente sua governabilidade.

Primeiro, criar uma instância metropolitana com autoridade para regulamentar e recursos orçamentários para executar as políticas especificamente metropolitanas, principalmente nas áreas de transporte e de saneamento. Isso exigirá alterações constitucionais, uma vez que no Brasil não estão previstas instâncias de poder intermediárias entre o município e o Estado.

Será preciso definir com rigor a composição e a forma de escolha da representação da sociedade nesse órgão, de maneira a evitar a reprodução pura e simples das distorções já existentes. Sem se alterar o atual sistema proporcional, qualquer eleição de representantes metropolitanos diluiria, como já dilui, na Assembléia Legislativa e na Câmara dos Deputados, os votos do eleitorado da capital e dos municípios mais populosos, em favor dos municípios menores e mais coesos. Essa questão está, portanto, intimamente ligada à questão do sistema eleitoral.

O segundo desafio é o de uma redistribuição tributária e fiscal que corrija a imensa injustiça da distribuição de receitas per capita das municipalidades maiores, cujos problemas são mais complexos. Esse desafio só poderá ser enfrentado com o empenho e a liderança de um chefe do Executivo federal sensível à magnitude dos problemas inerentes às metrópoles globais.

O terceiro consiste numa reforma do sistema que possa garantir uma distribuição regional mais equilibrada da representação legislativa, em contraposição à atual sub-representação das grandes cidades e regiões metropolitanas. A decisão por maioria simples ou absoluta em distritos menores e, portanto, mais adequados para representar a população de localidades e de pequenas regiões, é a solução, sem a menor dúvida. Mas as resistências são imensas. Essa reforma começa, por isso mesmo, pela tomada de consciência, pelo cidadão das regiões metropolitanas, de quanto o desenvolvimento, a segurança e a qualidade de vida do lugar onde vive e trabalha dependem das regras eleitorais que dão maior força ou diluem seu poder de voto. Sem o empenho decidido do próprio eleitor, as elites políticas dificilmente se empenharão, por sua vez, na reforma.

Se um pouco que seja das idéias discutidas pelos seminários do Urban Age chegaram ao cidadão comum, um passo terá sido dado para enfrentar esses imensos desafios.