Folha de S. Paulo, 27 de março de 1994

O empresário alemão Oskar Schindler visitou o Estado de Israel em 1961. Por coincidência, o criminoso de guerra Adolf Eichmann, também alemão, estava sendo julgado. O contraste entre os destinos dos dois homens despertou o interesse da imprensa internacional. Havia, porém, muito ceticismo quanto à possibilidade de ter existido um campo de trabalhos forçados, um jornalista mais afoito o interpelou:

“Como pode o senhor explicar que conhecesse todos os membros da SS na região da Cracóvia e mantivesse com eles transações regulares?”

A resposta de Schindler foi pronta e incisiva:

“Naquele estágio dos acontecimentos, seria meio difícil discutir o destino dos judeus com o Rabino-Chefe de Jerusalém.”

Era assim Oskar Schindler. Ágil, corajoso, esperto. O ator Liam Neeson pondera que foram seus defeitos, tanto quanto suas qualidades, que ajudaram a salvar os 1.100 judeus e sua famosa relação.

Esta é uma razão a mais por que ninguém consegue assistir impassível ao filme A lista de Schindler. A recriação magistral de Spielberg e o livro do australiano Thomas Keneally comovem, inquietam, provocam. Os impactos são fortes e sucessivos.

Primeiro, dos crimes horrendos cometidos pelo nazismo. A arte em preto-e-branco de Spielberg os resgata do esquecimento em que nunca, nunca mesmo, devem ser deixados. A história se concentra  nas atrocidades que levaram ao extermínio de seis milhões de homens, mulheres, velhos e crianças simplesmente por serem judeus. Transformados em bodes expiatórios das frustações econômicas e políticas da Europa Central e Oriental (poloneses aplaudem quando eles são confinados no gueto de Cracóvia), os judeus são tangidos de um lado para outro da Europa para que seus bens possam ser transferidos de mãos e seu trabalho espoliado até a inanição.

Keneally recorda ainda que outras minorias étnicas, como os ciganos, foram vítimas da mesma tentativa desvairada de purificação ariana do Reich. E como era cruel também a repressão que perseguia os antifascistas do Leste ou do Oeste, ou quem se opusesse às tropas alemãs.

Apesar desse clima generalizado de arbítrio e terror, Schindler foi capaz de ajudar centenas de judeus. Aqui somos atingidos pelo segundo impacto: não há como justificar a omissão diante das atrocidades nazistas. Por mais desesperadora que seja uma situação histórica, é sempre possível um gesto de solidariedade e uma iniciativa de resistência.

Por isso mesmo as próprias organizações judaicas condenam a cumplicidade de judeus que, arregimentados em conselhos ou guardas especiais, se prestaram a disciplinar, punir ou até selecionar outros judeus para os campos de extermínio. Nas situações extremas é que o ser humano revela seu lado mais sombrio e mesquinho, como no comandante Amon Goeth, ou suas potencialidades mais nobres, como no aventureiro Oskar Schindler.

Aqui sobrevém o terceiro impacto perturbador: Schindler não se distinguia por nenhuma consciência ética elevada. Nem mesmo podia ser considerado um democrata convicto. Alguns dos prisioneiros salvos por ele declararam a Keneally com espírito: “Graças a Deus, ele era mais fiel a nós do que à mulher!”

Boêmio, mulherengo, filiado ao Partido Nazista mais por cálculo do que por convicção, Schindler enfrentava dificuldades financeiras quando foi recrutado pelo serviço secreto alemão para viajar pela Europa Central e informar sobre as instalações militares e o potencial produtivo de regiões e cidades que o alto comando de Hitler já planejava invadir. Assim conheceu Cracóvia, a cidade a que retornaria com as tropas  alemãs para tirar proveito dos conhecimentos e da teia de relações que angariara.

Agiu, então, como muitos outros empresários alemães: aproveitou-se das informações, dos bens e o trabalho forçado de judeus amedrontados para enriquecer rapidamente. Era mais compassivo, mas não menos ambicioso e esbanjador. Hábil com judeus e oficiais alemães, acumulou em pouco tempo razoável fortuna. Gradualmente, porém, foi-se indignando com as barbaridades que presenciava, sobretudo quando a “solução final” de extermínio começou a ser praticada. Arriscou, então, vida e fortuna para salvar os judeus que estavam a seu alcance. E como relata Keneally, chegou a manter contatos com organizações clandestinas, como as agências europeias do Comitê Judaico da Partilha, a Organização de Combate Judaica ou o Exército do Povo Polonês.

Findo o pesadelo, Schindler voltou a sua vida apagada e atribulada de anteriormente e só escapou de privações porque nunca mais deixou de ser ajudado pelos judeus a quem ajudara. Paradoxalmente, a guerra fora seu grande momento de ambição e de nobreza. Diante de situações limítrofes, tênue é a linha que separa a virtude da vilania!

Esta constatação é, provavelmente, a que mais incomoda. Como alertou Spielberg em entrevista: “Schindler é ambíguo porque é humano”. Quantos, mesmo saindo do cinema com os olhos úmidos e o coração amargurado com as crueldades de 50 anos atrás, permanecem com mente e olhos fechados para o ressurgimento do nazismo em nossos dias ou para os atentados contra indefesos trabalhadores imigrantes!

Somos humanos e, por isso, ambíguos. Mas precisamos ser cada vez mais humanos e menos ambíguos. Apesar das diferenças de sexo, de etnia, de religião ou de condição social, partilhamos uma identidade básica e uma herança cultural comum. Quando vamos escrever nossa lista das violências descabidas, das discriminações odiosas e dos privilégios iníquos – e combatê-las até que o ser humano se torne amigo do ser humano e não seu adversário mais perigoso?