Não é razoável deixar de pagar um benefício emergencial por causa de pendência eleitoral

José Serra*, O Estado de S.Paulo

14 de maio de 2020 | 03h00

As filas, enormes e anárquicas, que a população brasileira tem enfrentado para receber um benefício social emergencial contrariam as normas sanitárias e o bom senso. De forma precipitada, mas previsível, o dedo acusador é endereçado ao ente pagador, a Caixa Econômica. O descompasso entre a urgência social (a emergência sanitária) e o martírio dos longos períodos na espera de atendimento – muitas vezes infrutíferos – pode ser manifestação da ineficiência e ineficácia da corporação. Mas também, e mais provavelmente, é a expressão de um desenho legal e institucional inadequado para responder a uma situação que o mundo está vivendo e nos pegou a todos de surpresa. A atual pandemia pode não ser um cisne negro, mas seu tamanho, tal como se mostrou, com extensão e virulência inéditas na História recente da humanidade, era improvável.

No Brasil, o caso específico do pagamento do auxílio emergencial se reproduz, com outras singularidades, nas mais diversas dimensões sociais, políticas, econômicas e mesmo científicas. Os protocolos usuais para criar, testar e aprovar medicamentos parecem estar em conflito com as demandas por respostas sanitárias quase imediatas ao flagelo. Toda a formatação institucional, legal e organizacional, que parecia ser funcional em tempos “normais”, está sendo submetida a um estresse que induz, pela ineficiência que revela neste momento de crise, a desrespeitar o seu cumprimento. Metas fiscais como as contempladas no Tratado de Maastricht, no caso europeu, são abertamente ignoradas. Se alguma vez puderam ser consideradas um arcabouço para disciplinar potenciais irresponsabilidades na gestão da política econômica, hoje parecem completamente disfuncionais.

Que lições podemos colher do atual choque? Parece óbvio: a resposta dependerá do futuro pós-pandemia. Se assumimos uma perspectiva otimista e presumimos um rápido retorno ao “antigo normal”, as tarefas para o futuro serão desafiadoras; essencialmente, consistirão em administrar a “ressaca” no tempo – como as dívidas públicas que serão deixadas de herança. Alguns ajustes serão feitos nas diversas áreas, principalmente na sanitária, mas, basicamente, instituições, marcos legais e formatações organizacionais permanecerão.

Nessa perspectiva, a atual crise seria entendida como um evento transitório, talvez produto da “má sorte”, um episódio que dificilmente se reproduziria no futuro e que, com os ajustes pertinentes, na eventualidade de uma réplica, as sociedades – especialmente as modernas democracias liberais – seriam capazes de administrar. Transformar o período pré-coronavírus em nova utopia a ser perseguida apequena os corolários da atual crise.

Afora aspectos muito específicos, a recomendação que podemos extrair da análise da atual conjuntura diz respeito à necessidade de assumirmos o futuro em que o normal é formular respostas flexíveis para a incerteza e a dubiedade, com o desenho de marcos de regulação institucional, legal e organizacional propensos a rápidas adaptações. Estruturas rígidas, centralizadas, muito hierarquizadas, nas quais prevalecem lentos processos burocráticos de decisão, aprofundarão custos dos imprevisíveis choques negativos no futuro. A única certeza que podemos ter é a imprevisibilidade e a ela temos de nos adaptar.

A estrutura da Caixa não parece ser a mais adequada para oferecer uma resposta urgente à situação atual de emergência social. Não apenas não oferece solução eficiente, como aprofunda os desdobramentos negativos, com as filas e aglomerações.

Outras formas organizacionais, como as atuais fintechs, devem ser avaliadas e experimentadas. Em termos de marcos legais, não é razoável imaginar que um benefício emergencial possa deixar de ser pago porque o CPF do potencial beneficiário foi bloqueado por pendência com a Justiça Eleitoral. Isso deveria ter sido considerado antes do anúncio dos pagamentos, e não após as aglomerações e confusões amplamente noticiadas.

Em matéria sanitária temos situações similares. Uma resposta inadequada ou insuficiente seria a formação futura de amplos recursos humanos na área de médicos “urgentistas”. Todavia não sabemos onde e como se manifestará a próxima crise sanitária. A prioridade deve ser formar recursos humanos nas diferentes áreas da saúde com flexibilidade para serem alocados com rapidez onde a carências se manifestarem.

O mundo moderno é assemelhado a uma enorme rede. A sua complexidade e a interconectividade têm inúmeras vantagens, mas apresentam enormes riscos, sendo um deles a possibilidade de choques que provoquem processos centrífugos de desintegração. Em outros termos, as sociedades contemporâneas podem ser comparadas a sistemas dinâmicos em que as possibilidades de uma trajetória caótica são sempre factíveis. Não podemos retroceder na complexidade atual das interações dos países e tampouco prever a integralidade dos choques. A alternativa será desenvolver marcos institucionais, legais e organizacionais que tenham flexibilidade suficiente para evitarmos cenários de caos e desintegração.

JOSÉ SERRA É SENADOR (PSDB-SP)