Folha de S. Paulo, 11 de setembro de 2003

Estive hoje com o Volodia Teitelboin e ele me disse que o general Prats demitiu-se. Foi substituído pelo chefe do Estado-Maior…”

O general Pinochet?”

Isso mesmo. O Volodia considera que isso fortalecerá o governo, que afastará o risco do golpe. Me disse que o Pinochet é legalista e que o Prats é bom, mas estava desgastado.

O tema da conversa era a situação chilena e quem transmitia as informações era Luiz Carlos Prestes, no dia 24 de agosto de 1973. Eu estava visitando a União Soviética e fui conhecê-lo no modesto apartamento em que morava, em Moscou. Volodia era senador e dirigente do Partido Comunista do Chile.

O general Carlos Prats era o comandante-chefe do Exército chileno. Eu o conhecera pessoalmente: militar culto, conservador, mas de convicções democráticas e frontalmente contrário à intervenção das Forças Armadas na política. O general Augusto Pinochet era o segundo na hierarquia do Exército. Homem de confiança de Prats, assumira durante vários períodos o comando interino do Exército, tendo sempre exibido um comportamento “legalista” no convulsionado processo político chileno.

Apesar dessa referência atenuante, não tive dúvida: o golpe passava a ser questão de dias. Prats se demitira porque esposas de generais haviam feito uma manifestação pública contra ele. Em vez de punir os generais envolvidos, preferiu demitir-se. Outros três generais que ocupavam postos-chave decidiram seguir Prats. Caíra o homem que, de fato, sustentava a legalidade chilena.

Decidi suspender a viagem e voltar ao Chile, onde vivia havia mais de oito anos. Minha hipótese era que o golpe ocorreria antes de 18 de setembro, data nacional do país, quando os militares deveriam desfilar prestando continência ao presidente Salvador Allende. Parecia-me claro que, dessa vez, isso não iria acontecer.

Alguns dias depois de chegar a Santiago e começar os preparativos para deixar o Chile com minha mulher Monica e nossos dois filhos, fui acordado por ela mais cedo do que de costume: “Estão cercando e atirando no La Moneda”. Em toda a minha vida, não me lembro de ter despertado de forma tão rápida e lúcida, com o coração tão acelerado, como nessa manhã de 11 de setembro de 1973.

Os rumores e o que se ouvia nas emissoras de rádio de Santiago eram confusos, mas esclarecedores: o golpe começara para valer. Apesar de considerá-lo inevitável, fiquei abismado. Em 1964, no Brasil, me ocorrera algo parecido. Parecia incrível que o previsto estivesse acontecendo, de forma tão clara e definitiva.

Acabei saindo de casa, não me lembro para onde. O movimento de carros e de gente era intenso e nervoso. No trânsito, cruzei somente com uma pessoa conhecida: um sacerdote jesuíta ligado à “Iglesia Joven” que nos casara quase seis anos antes, deixara o sacerdócio pouco tempo depois e fora, então, curiosamente meu aluno num curso de pós-graduação. Em certo momento, procurei chegar perto da sede do governo, o palácio de La Moneda. Não foi possível, mas, por volta de meio-dia, da avenida que leva ao palácio, a um quilômetro de distância, pude ver a fumaça do bombardeio.

A população foi obedecendo com rapidez às ordens de toque de recolher, transmitidas pelas rádios que já estavam em mãos dos golpistas. Ficar na rua poderia significar prisão ou fuzilamento. Comparado àquele banquete de felinos disputando suas presas, o golpe de 1º de abril de 1964 no Brasil parecia um delicado chá de senhoras.

Num primeiro momento, não tive certeza de que o general Pinochet, comandante-chefe do Exército, estivesse à frente do golpe. Mas a ilusão de que houvesse alguma divisão nas Forças Armadas foi desagradavelmente desfeita pela voz esganiçada e ameaçadora do general Pinochet na apresentação da Junta Militar golpista na noite mesma do dia 11, pela TV. Como se soube depois, somente no sábado, dia 8 de setembro, Pinochet se inteirou do golpe em marcha para a terça-feira seguinte. E no domingo decidiu aderir ao perceber que não tinha condições de frear a conspiração.

Há um fato pouco valorizado nas análises sobre a queda de Allende. No fim de semana anterior ao golpe, o presidente estivera preparando um discurso que faria na terça-feira, dia 11, quando anunciaria a convocação de um plebiscito sobre as “reformas” (no Chile, nessa época, se falava delas o tempo todo, embora com sinal diferente do que têm recebido no Brasil nos últimos anos). Isso havia sido acordado com o presidente da Democracia Cristã, o principal partido de oposição. Se perdesse o plebiscito – o que era provável -, Allende renunciaria.

Não é impossível que, se esse pronunciamento tivesse sido feito uma semana antes, o golpe se esvaziasse. Não é impossível também que os golpistas, que tinham conhecimento do fato e temiam o esvaziamento das tensões, tenham antecipado a data do golpe.

Um livro de Patrícia Verdugo, acompanhado de um CD, mostra os diálogos dos chefes militares por rádio durante todo o dia 11 de setembro. Alguma emissora fez a gravação e alguém a divulgou 25 anos depois. Por ela se constata que a adesão tardia de Pinochet teve uma trágica contrapartida: ao longo daquele dia, ele foi o mais raivoso, truculento e radical dos chefes golpistas. Até seu castelhano era o mais vulgar – do sotaque à gramática.

Em nossa casa, a expectativa era sempre o que diria o próximo “bando” (comunicado) da Junta Militar. Vinha o locutor e anunciava: “Bando numero siete”. E nomeava uma lista de pessoas que deveriam apresentar-se à primeira patrulha que encontrassem na rua. Quem não o fizesse, ameaçava o “bando”, sofreria “consecuencias fáciles de se prever”. Lembro-me de que, em certo momento, nomearam o Roberto Frenkel, brilhante economista argentino que, na época, morava no Chile e trabalhava comigo. A partir daí era óbvio: aumentava a chance de que meu nome também aparecesse.

Na televisão, o general Bonilla, segundo de Pinochet, fez um pronunciamento afirmando que no Chile havia um exército clandestino de 10 mil estrangeiros. Pedia às pessoas que denunciassem qualquer suspeito. Diga-se de passagem que, tempos depois, Pinochet mandou matar Bonilla, simulando-se um acidente.

Dois fatores, em tese, nos protegiam a curto prazo. Primeiro, eu era funcionário internacional, tinha imunidade diplomática e visto oficial em meu passaporte italiano (que obtivera por ser meu pai cidadão italiano; o governo brasileiro sempre se recusara a conceder passaporte aos exilados).

Segundo, enquanto eu estava na Europa, Monica decidira mudar de casa. Morávamos havia anos numa pequena vila. Mas as ameaças anônimas estavam se intensificando, provavelmente devido à ação de vizinhos ligados a grupos de extrema direita. Eles sabiam que eu era exilado e que o sobrenome de Monica era Allende (embora ela não tivesse relação próxima de parentesco com o então presidente). A nova casa era noutro bairro e nenhum vizinho tivera tempo de saber quem éramos. Isso afastava a possibilidade de uma denúncia.

O toque de recolher foi sendo prolongado ininterruptamente. Quando foi suspenso por algumas horas, no terceiro ou quarto dia, fui procurar o Betinho, Herbert José de Souza, para ver como estava e tirá-lo de casa. Por sua condição de saúde, ele não podia sofrer nenhum tipo de violência física.

Em seu pequeno apartamento, ele ainda conservava cartas, documentos, listas de endereços e especulava com a possibilidade de haver resistência no sul do país, na cidade de Concepción, liderada pelo general Prats. Manifestei-lhe meu ceticismo sobre isso e argumentei que ele devia sair imediatamente de casa, pois seu endereço era muito conhecido. Além do mais, ele era assinante do “El Siglo”, jornal do Partido Comunista do Chile. Era, portanto, uma questão de horas para que viessem buscá-lo.

Por meio de Carmen Miró, uma panamenha, diretora do Centro Latino-Americano de Demografia, procurei o embaixador do Panamá, amigo do general Torrijos, então presidente desse país, e convenci-o a abrir sua embaixada -de fato, um pequeno apartamento térreo- para asilar perseguidos políticos. Os três primeiros que levei foram Betinho, Sandra Brisola, minha aluna na faculdade de economia (hoje professora da Unicamp) e uma outra aluna chilena, Glória, que era simpatizante do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária), que fazia oposição pela esquerda a Allende.

Em poucos dias, a pequena embaixada do Panamá chegou a abrigar mais de cem pessoas, a maioria brasileiras, sobrevivendo em péssimas condições, num espaço exíguo. Aproveitando-me do fato de que meu carro tinha chapa diplomática, cheguei a levar comida várias vezes, passando-a pelas janelas. Mais tarde, houve um fato curiosíssimo: o embaixador de Torrijos alugou uma casa com mais espaço e transladou os asilados. Só que o dono da casa era um deles -Theotonio dos Santos, brasileiro, professor e um dos gurus intelectuais da esquerda chilena. Ele passou, então, à condição de asilado político em sua própria casa!

A primeira notícia de violência chegou logo: um dos diretores da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), Luis Ramallo , encontrou o cadáver de um de nossos alunos de nacionalidade boliviana num depósito de mortos, com uma perna arrancada por um obus ou algo do gênero. Ramallo, sociólogo espanhol e ex-jesuíta, corajosa e literalmente pôs a boca no mundo, falando para toda a imprensa internacional. Foi a primeira grande denúncia sobre o terror reacionário chileno.

Passei a funcionar como enlace entre as diferentes organizações internacionais, todas mobilizadas (inclusive a Cepal -Comissão Econômica para a América Latina-, cujo secretário-executivo era o atual presidente do BID, Enrique Iglesias) para proteger seus funcionários, alunos e estrangeiros em geral. Entre outras providências, fazíamos contatos com as embaixadas em busca de apoio. O grande vexame, motivo de tristeza e indignação, foi dado pela Embaixada do Brasil, que virou as costas para os brasileiros homens, mulheres ou crianças , perseguidos naqueles dias terríveis pelo simples fato de serem estrangeiros. O embaixador Câmara Canto, partidário e participante assumido do golpe e das comemorações que se seguiram, presidiu um dos episódios mais lamentáveis da história da diplomacia brasileira, que, aliás, está à espera de uma reconstituição.

Terminei abrindo uma outra embaixada para perseguidos políticos: a da Itália, mas, dessa vez, para mim mesmo. Certo dia, perto do final de setembro, eu havia deixado uma reunião no gabinete do diretor da Flacso dizendo que iria até a Cepal. Ao sair do gabinete, decidi passar antes em minha sala, que ficava num prédio anexo, ao qual se tinha acesso por uma pequena porta no pátio. Pouco depois, quando saía da sala, meio distraído, topei com Enzo Falleto (co-autor, com Fernando Henrique, do famoso livro sobre dependência e desenvolvimento na América Latina), que me olhou espantado: “Hombre, los milicos vinieran a buscarte: que haces acá?” Todos acharam que eu não estava mais no prédio, tanto os colegas, quanto os soldados que neles acreditaram e foram embora.

Nesse mesmo dia, sem que eu soubesse, tinham invadido o apartamento do nosso poeta Ferreira Gullar, que tinha presidido o CPC da UNE quando eu era presidente dessa entidade. Era o apartamento onde eu havia morado, anos antes, com o Vilmar e a Regina Faria. Os soldados tinham ido à minha procura, e Gullar, além do endereço, tinha também o “José” antes do Ferreira…

Passei então a dormir na residência do embaixador da Itália, mas como ainda não havia nenhum asilado lá, não havia também polícia na porta. Por isso, eu saía durante o dia para apressar os preparativos de viagem da família. Cheguei a ir à polícia civil tratar dos passaportes.

Depois que o Ministério de Relações Exteriores pediu desculpas pela tentativa de prender um funcionário internacional com imunidade diplomática e renovou o visto oficial em meu passaporte, decidimos viajar. Mas se tratava de uma armadilha. No dia 14 de outubro, depois de o passaporte receber o carimbo de saída, fui preso no aeroporto com meu filho recém-nascido no colo e na frente de minha mulher e de minha filha de quatro anos.

O delegado que fez a prisão atrapalhou-se com meu nome. No Brasil e na Itália, não levo o sobrenome materno (Chirico). No Chile, a inclusão do sobrenome materno é obrigatória. E a ordem de prisão era para José Serra Chirico. Como para convencer-se de que era eu mesmo, leu em voz alta um trecho da ordem de prisão, algo assim: “Subversivo, izquierdista, intelectual y muy vivo”.

Fui então algemado e passei umas três horas sentado na ala de desembarque internacional do aeroporto, sendo objeto do olhar furtivo de todos os passageiros que chegavam. Aprendi na prática que, quanto mais se mexe as mãos, mais as algemas apertam, machucando os pulsos.

Levaram-me, finalmente, para um “cuartel” da polícia civil. Passei a noite num banco de madeira, onde os detetives jogavam ludo e discutiam sobre futebol, aos gritos. Conquistei algum mérito junto a eles falando sobre o futebol brasileiro e elogiando o famoso goleiro chileno Livingstone. Ofereceram-me um capote.

Assustado e cada vez mais tenso à medida que me lembrava de motivos e pretextos para que viesse a sofrer algo feio nas mãos da nova repressão chilena, acabei me convencendo de que o pior iria acontecer. A partir desse ponto, para minha surpresa, consegui acalmar-me e recuperar alguma energia para enfrentar a situação. E, apesar do banco duro, da gritaria, do frio, da luz forte e de minha crônica dificuldade para pegar no sono, dormi profundamente.

De manhã, depois de um interrogatório cretino, mas sem qualquer espécie de violência, fui removido para o Estádio do Chile, o mesmo onde Garrincha e Vavá haviam ganhado a Copa do Mundo para o Brasil em 1962, agora transformado em campo de prisioneiros e, como se soube depois, de torturas e assassinatos. Deixaram-me na portaria, onde passei o dia. Alegando imunidade diplomática, insistia para falar com o comandante do lugar, coronel Spinoza. Não sabia, ainda, que lá estavam matando detidos e que o coronel era o responsável por esses assassinatos.

No começo da noite, um oficial me comunicou: “Por orden del mayor Ivan Lavanderos, usted puede salir, pero tiene que presentarse mañana temprano, a las siete y media, para ser interrogado por el mayor”.

Não fazia sentido. Soltar-me à noite para voltar de manhã? O mais provável é que me dessem um tiro pelas costas e alegassem tentativa de fuga. Mas não podia hesitar. Aceitei e pedi para passar por uma cela onde havia brasileiros. O primeiro que distingui foi Silvério, um estudante paulista de economia. Disse-lhe que estavam me soltando e que, se me acontecesse alguma coisa, ele deveria denunciar. Tempos depois, já na Europa, contou-me que não entendeu nada do que eu falara. Fruto da combinação de uma voz e dois ouvidos sob ataque de nervos.

Caminhando para o portão do estádio, escoltado por um sargento, avistei um orelhão. Olhei para o soldado e arrisquei: “Usted tiene um jeton?” “Si, como no”, respondeu com cortesia, entregando-me uma ficha. Liguei para um amigo e avisei que estava sendo solto. A caminhada da porta do estádio até a primeira rua onde consegui pegar um táxi foi a mais tensa de minha vida.

Na manhã seguinte, decidimos numa reunião (da qual participou o atual presidente do Chile, Ricardo Lagos, então professor da Flacso) que eu não me apresentaria no estádio e que ficaria na Embaixada da Itália, onde já se encontravam Monica e as crianças. Quando fui preso, ela decidira permanecer no Chile, ficando na embaixada com as crianças. Quando se comunicou que eu não me apresentaria, o Exército colocou soldados na porta. A família recebeu salvo-conduto em janeiro, mas eu fiquei retido até maio, pois o governo negava sistematicamente a concessão de salvo-conduto. A certa altura, a embaixada chegou a acolher mais de 600 asilados.

Eu havia sido preso num domingo e solto na segunda-feira. Na quarta-feira seguinte foi fuzilado o major Lavanderos, que me soltara. Segundo me disse o embaixador sueco (um verdadeiro herói naqueles dias e noites de opressão e terror), o major foi julgado por alta traição, pois teria protegido “inimigos” do Chile.

Viajei do Chile para a Itália e de lá para os Estados Unidos, para fazer o doutorado em economia. Antes de concluí-lo, na Universidade de Cornell, soube do assassinato do general Prats em Buenos Aires, onde se exilara, crime cometido por ordem de seu antigo protegido, o general Pinochet. Em seguida, fui trabalhar em Princeton (no mesmo instituto em que estou hoje) e lá assisti à missa pela alma de Orlando Letelier, ministro da Defesa de Allende, recém-assassinado em Washington por capangas do governo chileno.

O parágrafo final de um pequeno documento, manuscrito em setembro de 1973, encontrado no Dops paulista e que chegou às minhas mãos, dizia, referindo-se a mim:

“Trata-se de “boa gente”, que merece ser “tratado” pelos chilenos”.