22 DE MARÇO E A CRISE
José Serra

Folha de S. Paulo
05 abril 1988

A fim de derrotar o parlamentarismo e fixar cinco anos de mandato presidencial nas disposições permanentes da nova Constituição, o governo procurou e obteve apoio entre expressivos setores empresariais. Um dos argumentos invocados foi simples e dramático: aqueles resultados seriam necessários para o enfrentamento da crise econômica.

As medidas “duras” a serem adotadas, segundo o Planalto, requeriam o reforço e a consolidação da autoridade do chefe do Executivo: cinco anos de mandato, presidencialismo, maioria no Congresso e reafirmação do prestígio de Sarney diante do país, mediante a vitória de suas teses no plenário da Constituinte. Em entrevista à revista Veja, após a votação, o presidente da República foi claro: “Acho que agora estou livre de todas as marras para conduzir o processo de transição até o fim. A rigor, não pude governar até agora”.

Salvo os partidários da teoria do “quanto pior melhor”, é provável que todos os que foram contrários aos resultados daquela terça-feira, 22 de março, estejam torcendo para que, finalmente, o governo Sarney seja bem sucedido diante do desafio da crise.
Quais as chances? Escassas, infelizmente.

Para começar é preciso registrar o vigor objetivo dos transtornos econômicos, consubstanciados no quase colapso do financiamento público e na inflação mensal fluindo no leito dos 15-20% ao mês. Além disso, são enormes a complexidade e dificuldade prática de se adotar medidas eficazes. Estas, de modo algum seriam do agrado de todos, do tipo “jogo de soma positiva”, nem, como parece gostar o presidente, com efeitos tão rápidos como explodir bolhas de sabão.

Cabe sublinhar, ainda, a fragilidade da base de sustentação política do governo para um programa econômico austero: ninguém ignora que a taxa de fisiologia, patrimonialismo e populismo dos parlamentares próximos ao governo situa-se acima da média, nem que os governadores tão decisivos no apoio às teses de Sarney no dia 22 de março, querem, como contrapartida, afrouxamento e não aperto das restrições financeiras aos Estados.

Finalmente, a tendência do governo é aguardar a votação das disposições transitórias, onde realmente será fixado o mandato do atual presidente. Admitamos que isto venha a ocorrer em maio, e que sejam aprovados os cinco anos. Pois bem, estaremos nessa ocasião, a apenas 14 meses das eleições presidenciais (1º de setembro de 1989, segundo a nova Constituição) trata-se de um prazo pequeno para a verdadeira reconstrução econômica que o país necessita e muito mais do que insuficiente para render bons dividendos em popularidade.

Nesse contexto todo, de instabilidade econômica e de incertezas sobre o que irá ocorrer, prosperam como nunca as pressões corporativistas, de toda sorte, que, como buscapés soltos em noites juninas antigas, serpenteiam o espaço interno do setor público, livre e assustadoramente, agravando o quadro de maneira recorrente e imobilizando o governo. Como disse com sua habitual clareza Luciano Martins: “Quanto mais a situação econômica se deteriora, e menos perspectivas se abrem para sua solução, maior é a tendência para que os grupos com capacidade de organização mais se entrincheirem na defesa dos seus interesses corporativos, criando bloqueios na sociedade de difícil solução. Ora, é justamente em conjunturas como essa que a crise do Estado e de seu aparelho (pela sua insolvência, pela degradação dos seus serviços, pela desmoralização de seus quadros) adquire uma importância redobrada: ela retira das mãos de qualquer governante o instrumento para a execução de políticas de crise”.

Paralelamente, e de forma curiosa, também prosperam dentro e fora do governo receitas bem intencionadas, mas algo surrealistas, para a economia. Algumas equivalem, digamos, a prescrições de vitaminas para curar uma unha encravada. Outras, são do tipo matar o doente para curar a doença. E não faltam aquelas que supõem que o elefante não tem peso: ao falar de novas fórmulas salariais, por exemplo, colocam como pré-condição a redução do déficit público pela metade, sem dizer concretamente como.

Solução? Perdoem a insistência: eleições neste ano, que permitam formar um governo apoiado pela maioria da população, com legitimada autoridade e eficácia para enfrentar a crise. É garantido que a eleição leva a isso tudo? Não. Teremos apenas maiores chances, o que, hoje, já parece muito querer.

Artigo publicado na Folha de S.Paulo – A.2 – Opinião, em 5 de abril de 1988