Bilhão, fictício, subestimado e ilegal

Folha de São Paulo
1 de dezembro de 1988

As possibilidades de os parlamentares influírem no Orçamento de l990 são mínimas. As emendas de deputados e senadores podem alterar não mais de 2 por cento da despesa total.

Isto ocorre, porque, em primeiro lugar, não há dinheiro, face à crise fiscal devastadora que envolve a economia brasileira. Em segundo lugar, há um grande volume de vinculações entre despesas e receitas, e que impossibilitam emendas. Em terceiro lugar, há um forte aumento das transferências tributárias a Estados e Municípios, sem a correspondente transferência de encargos. Em quarto lugar, o Congresso está resistindo aos cortes e incentivos e outras medidas que aumentariam a receita para l990. As pressões dos setores privados potencialmente afetados por supressões de incentivos estão se revelando irresistíveis para a maioria dos congressistas. Do mesmo modo, dificilmente serão aprovados novos tributos, como, o Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto pela Constituição de l988.

Convém lembrar que os parlamentares não podem aumentar as despesas globais. Suas emendas criando despesas só podem ser feitas caso anulem outras despesas previstas no orçamento. Trata-se de um critério sadio da nova Constituição, cujos dispositivos sobre gastos públicos favorecem política fiscal austera e transparente.

Diante do impasse, chegou-se a uma solução imaginosa mas absurda, aprovada preliminarmente pela Comissão de Orçamento. Em resumo: (i) Considera-se que poderá haver “excesso de arrecadação” de l bilhão de dólares ao longo de l990, como diferença entre a receita efetiva e a prevista na lei orçamentária, graças à inflação. Ou, então, devido a que o indexador do orçamento terá um redutor em relação à inflação efetiva. (ii) Os parlamentares fazem emendas (estradas, pontes, subsídios, etc.) com base no bilhão de dólares. (iii) As receitas decorrentes do suposto excesso de arrecadação e as despesas correspondentes entrariam na lei orçamentária para l990. (iv) nesse ano, quando ocorresse aquele excesso, tais despesas seriam autorizadas.
Estamos diante, não tenho a menor dúvida, de um equívoco: esse montante de dinheiro para gasto não existe; se existisse, teria que ser bem maior; além de tudo, o procedimento sugerido é inconstitucional. Vejamos por quê.

Imagine-se um país mais pobre do que o Brasil: Biafra, por exemplo. Por que pobre? Certamente porque seus governantes não tiveram esta idéia genial: prever, no orçamento, uma inflação menor do que a efetiva e produzir bilhões de dólares graças a essa diferença, gastando-os em obras que geram empregos e crescimento. Ou, então, esses governantes perceberam que o tal “excesso de arrecadação” só no Brasil é que significa excesso a inflação sobe, a receita mas também a despesa governamental, aliás, mais esta do que a primeira.

Registra-se, ainda, é praticamente impossível em l990 aumentar a receita real por cima do previsto no projeto orçamentário do governo, o qual já supõe um aumento de receita real da ordem de 20 por cento – hipótese esfuziante nas condições de uma economia superinflacionária e semi-estagnada.

Além disso, se viesse a existir, aquele bilhão subestimaria o aumento de receita necessário, pois foram ignoradas as transferências constitucionais a estados e municípios e as vinculações obrigatórias a determinadas despesas. Tais transferências equivalem à metade de cada cruzado de receita de imposto da União; do que resta, 18 por cento tem que ser destinado à Educação, etc. Ou seja, para gastar l bilhão de dólares seria preciso bem mais de 2 bilhões de receita adicional de impostos.

Por último, há transgressões às normas constitucionais. A nova Constituição proíbe, por exemplo, que a lei orçamentária aprovada contenha dispositivos “estranhos à previsão da receita e à fixação da despesa”. Não permite, portanto, que a referida lei contenha hipóteses de receita e de despesas.

Além disso, a Constituição de l988, ao proibir emendas criando gastos sem, ao mesmo tempo, anularem outros de igual montante, visou precisamente impedir que fossem invocados excessos de arrecadação para justificar aumentos de despesas. Mais ainda: a Constituição proibe que as receitas previstas na proposta orçamentária do Executivo sejam revistas. Isto não tolhe o poder dos parlamentares, pois o Executivo nunca poderá utilizar receitas originalmente não previstas sem a aprovação do Congresso.
Há um raciocínio que considero perigoso: “Já que o dinheiro não existirá, porque não permitir a fantasia das emendas, amortecendo, desse modo, as pressões dos parlamentares”? Ledo engano, pois tal ilusão: (a) provocará frustação nos parlamentares e nos beneficiários virtuais das obras que julgam viabilizar; (b) criará uma pressão insuportável sobre o próximo governo para que as obras do bilhão de dólares sejam viabilizadas. Como? Ameaçando-se rejeitar qualquer projeto de suplementação de verbas que se fizer necessário em face da inflação alta, caso o Executivo não aceite incluir as obras aprovadas. Lembro ainda que se a indexação do orçamento foi derrubada o Executivo ver-se-á obrigado a recorrer, com muito mais frequência, a pedidos de suplementação.

Como não há recursos reais para cobrir as obras do bilhão de dólares, o caminho será aumentar o endividamento público, expediente que, nas condições atuais da economia brasileira, equivale a imprimir dinheiro.

Passar por cima da Constituição é grave, em sí e pelo precedente que abre para os futuros processos orçamentários. Pode-se destruir um dos aspectos que a Constituição tem de melhor: a organização racional e transparente do gasto público. Repudiar a Carta aprovada há pouco mais de um ano é uma contribuição negativa do Legislativo às instituições democráticas e ao desenvolvimento do país.

José Serra