Uma péssima cartada

Os danos da legalização da jogatina são muito maiores que os seus poucos benefícios

O Estado de S.Paulo
23 de novembro de 2017

O Senado está examinando projeto de lei que legaliza os jogos de azar (PLS n.º 186/2014). Essa legalização só traria prejuízos, incentivando a criminalidade e causando danos à economia, ao erário, à saúde pública e à estabilidade das famílias.

Há mais de 20 anos combato veementemente a reintrodução dos cassinos e a difusão, em cada esquina, de máquinas eletrônicas de jogos. Ao contrário do que se diz, há farta comprovação científica da associação entre jogo e problemas sociais. O jogo facilita a lavagem de dinheiro; induz ao aumento da violência, inclusive doméstica; eleva o absenteísmo e as fraudes no trabalho; leva muitas famílias à ruína econômica; e expande o alcoolismo, o uso de drogas e a criminalidade em geral. É pouco?

Se o PLS 186 virasse lei, seriam prejudicados programas sociais importantes, porque ele reduziria a arrecadação das loterias, ao prever a disseminação ilimitada das máquinas eletrônicas de apostas.

Hoje, quase metade do valor das apostas nas loterias da Caixa – R$ 14,9 bilhões em 2015 – é destinada a financiar políticas sociais. Nada menos do que R$ 5,4 bilhões são repassados ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), ao Fundo Nacional de Cultura, ao Fundo Penitenciário Nacional e a outras políticas públicas. Só a área da assistência social recebe R$ 2,5 bilhões.

Aliás, em matéria de tributação, o PLS 186 prevê alíquota irrisória, de 10%, sobre os “novos” jogos – e apenas sobre a receita líquida de prêmios. O tributo seria de apenas 5% sobre as receitas brutas. Vejam o absurdo: enquanto a tributação sobre a gasolina chega a 46% – em ICMS e impostos federais – e a tributação sobre telefonia e internet chega a 45%, estaríamos taxando a jogatina em apenas 5%!

Um argumento falso por vezes invocado é o de que o jogo já estaria liberado, uma vez que a Caixa oferece diversas opções de apostas, como a Mega Sena, a Loteca, etc. Ora, uma coisa são apostas de valor unitário moderado e com frequência de duas ou três vezes por semana; outra, bem diferente, é jogar repetitivamente por horas, noites e dias, como nos cassinos, bingos e videojogos.

A antropóloga Natasha Schüll, do MIT, no recente livro Viciando de Propósito, apresenta com rigor científico os diversos elementos tecnológicos, incluindo algoritmos sofisticados, que levam os jogadores a um estado de transe, do qual não são mais capazes de escapar.

Em pesquisa realizada na Suécia, os autores Sundqvist, Rosendahl e Wennenberger demonstram que há alta relação entre o vício no jogo e o consumo de álcool, que passam a se fortalecer mutuamente, agravando o quadro clínico e psiquiátrico das vítimas.

As conclusões desses estudos refutam a suposta equivalência entre as apostas em loterias de baixa frequência com a dos ambientes dedicados exclusivamente ao jogo, em que cada detalhe é estudado para estimular o comportamento compulsivo dos jogadores.

Explorar e aprofundar o vício é vital para a indústria do jogo. Relatório da Comissão Nacional de Estudos do Impacto do Jogo, nos Estados Unidos, apurou que, no mínimo, 30% da receita dos cassinos é extraída de jogadores compulsivos.

Uma isca clássica dos cassinos é oferecer hospedagens, alimentação e bebidas a preços mais baixos, que são fartamente compensados pelas altas somas que os clientes perdem nas mesas de jogo. Pesquisa patrocinada pela própria Associação Americana de Jogos – insuspeita, portanto – realizada pela empresa Oxford Economics mostrou que, em 2013, a receita total de apostas dos cassinos foi de US$ 39 bilhões, enquanto a receita agregada de venda de alimentação, bebidas e diárias de hotel foi de US$ 8,6 bilhões.

Não é por acaso, aliás, que o artigo 13 da proposta do relator autoriza a venda de bebida alcoólica nos cassinos e locais de jogos eletrônicos. Essa estratégia teria efeitos corrosivos sobre as vendas de hotéis, restaurantes e bares já existentes.

Muito se propala sobre a capacidade de geração de empregos por cassinos. Isso é falso. O que ocorre é a substituição de antigos empregos pelos novos, com mais desperdícios no meio. O ganho líquido, quando há, é irrelevante. Em Atlantic City, metade dos restaurantes da cidade fechou as portas depois da abertura dos cassinos ali, no final dos anos 70.

Outro argumento do lobby do jogo é de que os cassinos levam desenvolvimento a regiões mais pobres. Os milionários abandonariam Monte Carlo e Las Vegas e se divertiriam nos resorts de jogo no interior do Brasil? Um argumento risível.

O PLS 186 não limita o número de cassinos nem em nível nacional nem nos Estados ou municípios. O que se verá, provavelmente, serão governadores e prefeitos se acotovelando para oferecer incentivos aos empresários da área, numa versão piorada da guerra fiscal que vem sendo travada há décadas, com resultados devastadores sobre as contas públicas.

Mas nem o sacrifício fiscal dos Estados e municípios bastaria. Quem garante que – tudo o mais constante – os grandes jogadores preferirão as mesas dos cassinos tupiniquins, tendo ao seu lado fotógrafos e auditores da Receita Federal, curiosos sobre suas apostas, seus prazeres e suas aflições?

Conhecer a experiência de outros países federativos é interessante para o debate sobre o jogo. Nos Estados Unidos, a saturação do mercado de cassinos tem tornado inviável a maioria dos novos empreendimentos e comprometido a solidez dos já existentes. A geração de receitas nos cassinos recentemente abertos no Estado de Nova York está 40% abaixo das previsões. Em 2010, o Estado de Rhode Island se comprometeu a subsidiar em até US$ 3,5 milhões por ano o funcionamento do Cassino Twin River, falido no ano anterior. Foi a condição imposta pelos adquirentes da massa falida para continuar a operação.

Os danos da legalização da jogatina são muito maiores que os seus poucos benefícios. Aprovar essa medida seria uma péssima cartada do Congresso.

José Serra (Senador/PSDB)