O futuro não será como era oferece um arsenal a quem luta por um futuro mais republicano

Marcelo Consentino, O Estado de S.Paulo
16 de março de 2021 | 03h00

Goste-se ou não de José Serra, concorde-se ou não com suas ideias, aprove-se ou não sua trajetória política, não se lhe pode negar o senso de pertinência. Quem tiver dúvidas pode consultar os discursos, entrevistas e artigos publicados (boa parte neste Estado) entre 2015 (quando Serra assumiu a cadeira de senador) e 2020, compilados pelo Senado sob o título O futuro não será como era.

Trata-se de um sismógrafo dos debates mais vibrantes da arena pública. A mera enumeração dos tópicos – Política, Economia, Infraestrutura, Relações Exteriores, Segurança Pública, Saúde e, finalmente, a Pandemia – revela o esforço por um escrutínio holístico da agenda nacional. Mas ecletismo não é sinônimo de diletantismo. O senador fala com o conhecimento de causa de quem já comandou os Ministérios do Planejamento, da Saúde e das Relações Exteriores, além da Prefeitura de São Paulo e o governo do Estado.

O livro testemunha, além da pertinência, a pertinácia. “A persistência de José Serra na continuidade do rumo que o orienta em sua atividade pública, seu empenho em propor e implantar políticas, que ele encara como resolução de problemas nacionais, são indiscutíveis”, anota no prefácio José Augusto Guilhon Albuquerque. “Alguns veem nisso vício, e chamam teimosia. Os que acompanham positivamente de perto sua vida pública veem nisso virtude e chamam obstinação”.

É de lamentar que essa obstinação – ou teimosia, como queiram – não tenha sido suficiente para superar a síndrome de Estocolmo tucana na corrida presidencial de 2010, a ponto de denunciar com a devida contundência as delinquências lulopetistas que mergulharam o País na crise em que agoniza hoje. Diante disso – ou talvez por isso –, é digna de nota a oposição enérgica de Serra tanto ao governo Dilma quanto ao governo Bolsonaro.

No início de 2016, o ano do impeachment, Serra disparou “três verdades claras” que o tempo tornou irrefutáveis. Primeira, “somos prisioneiros da maior e mais perfeita crise política, econômica e social de que se tem memória”. Segunda, o governo “carece de preparo e, acima de tudo, credibilidade” para “encontrar uma saída virtuosa”. Por fim, “a grande maioria da população deseja que esse governo Dilma termine o quanto antes, como condição para que a crise comece a ser enfrentada”.

Em abril de 2020, quando a peste do coronavírus já massacrava a população, Bolsonaro – após defenestrar um ministro da Saúde e intimidar outro por rejeitarem medidas anticientíficas – liderou um comício ante manifestantes que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal e a volta do AI-5. Serra lapidou uma síntese irretocável da truculência institucional bolsonarista: “Para Bolsonaro e seus seguidores, as autoridades legitimamente eleitas devem submeter-se a uma massa rebelada comandada por ele, que se compromete a fazer não tudo o que a Constituição permite, mas ‘tudo o que for necessário’ – expressão associada ao emprego da violência na política”.

Tais testemunhos são mais tempestivos do que nunca, num momento em que a Nação se encontra ante uma encruzilhada que pode definir seu destino por décadas. Na esfera federal, o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à arena eleitoral promete o tensionamento da polarização política ao ponto da ruptura. Por outro lado, há alguns anos é possível notar uma melhora sensível, ainda que granulada, na administração pública subnacional. Nas últimas eleições municipais prevaleceram os votos pragmáticos e as candidaturas ao centro. O próprio PT foi varrido das urnas e todas as apostas eleitorais do bolsonarismo fracassaram. Esse cenário ambivalente mostra que há uma janela de oportunidades para enterrar, de um só golpe, esses dois projetos perniciosos de poder. Verdade: essa janela é estreita como a porta que leva ao Céu. Mas, como esta, ele está ao alcance de todos. O futuro não precisa ser como era.

O valor perene do livro, contudo, mais até do que às reações circunstanciais às conjunturas políticas, deve-se às análises estruturais da coisa pública. Com efeito, se as primeiras são tão lúcidas e afiadas, é em razão da longa maturação e do escrutínio exercitados nas segundas.

Na agenda econômica, Serra trata persistentemente de ângulos variados como num caleidoscópio, do crescimento com responsabilidade fiscal e da racionalidade regulatória das políticas energética, sanitária e de transporte. Na pauta política, é notável o esforço de ir sempre além dos sintomas para diagnosticar as suas causas e prescrever arranjos institucionais mais sadios. Tudo subsidiado por uma massa criteriosa de dados. Em termos de administração pública, a cultura de Serra é quase incomparável.

O futuro não será como era é o testemunho de um estadista que, com maior ou menor consistência, vem consumindo suas forças no bom combate. Quem quer que vise o mesmo fim, mesmo discordando em maior ou menor grau dos meios, não pode deixar de visitá-lo e revisitá-lo. O corpo a corpo rotineiro com suas mais de 400 páginas enseja uma ginástica mental revigorante e oferece um arsenal inestimável para todos aqueles que lutam por um futuro mais republicano.
JORNALISTA, É DOUTOR EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO PELA PUC-SP