Iniciativas como o PLP n.º 18/2022 evidenciam os riscos e instabilidades inerentes ao atual arranjo federativo brasileiro.

José Serra, O Estado de S.Paulo
09 de junho de 2022 | 03h00

A alta vertiginosa dos preços dos combustíveis e as respostas do governo federal ao problema, que de fato repercute de muitas maneiras sobre a população, trazem à tona, mais uma vez, os conflitos e as contradições que permeiam o atual arranjo federativo brasileiro. É sintomático que um problema conjuntural tenha desencadeado uma disputa interminável opondo estados e União. Seu último capítulo tem por roteiro o Projeto de Lei Complementar nº 18/2022, discutido no Congresso Nacional com o objetivo de reduzir o ICMS incidente sobre combustíveis: uma nova versão do mais Brasília, menos Brasil.

O mundo vem lidando com um forte aumento do preço dos combustíveis depois que o petróleo atingiu cotações vistas pela última vez em 2008. Naquele ano, os contratos futuros do barril do Brent – o petróleo extraído do Mar do Norte e comercializado na Bolsa de Londres – chegaram a custar US$ 139. Hoje, estão valendo US$ 119, só que agora em um mundo pós pandemia e em guerra. Nesse contexto inflacionário, o Brasil e diversos países discutem medidas para evitar que essa alta nos preços do petróleo chegue da mesma forma nos combustíveis.

Na Europa, há países criando impostos sobre ganhos de empresas para financiar subsídios à energia, como a Finlândia. Outras nações congelam temporariamente os preços, como a França, enquanto outras promovem subsídios para famílias de baixa renda, caso do Reino Unido. Portugal chegou a criar uma espécie de voucher para compra de combustível com recursos do orçamento provenientes do aumento da arrecadação de impostos sobre combustíveis.

Nos Estados Unidos, os governos estaduais anunciam a suspensão temporária de impostos. A medida vem sendo chamada de “Tax Holiday” – feriado sem impostos. Ao menos cinco estados – Nova Iorque, Connecticut, Flórida, Geórgia e Maryland – anunciaram suspensão temporária dos impostos estaduais sobre combustíveis.

No Brasil, estamos assistindo a um conflito federativo entre a União e as demais unidades federativas. De um lado, temos parte do Congresso Nacional e o Poder Executivo federal unidos na missão de invadir a autonomia fiscal dos estados com o objetivo de reduzir, na marra, o ICMS sobre combustíveis. Do outro lado, os governos estaduais se opõem à medida tendo em vista os impactos fiscais e os riscos de subfinanciamento dos serviços públicos na área da saúde, da educação e da segurança.

Para entender o problema, é importante ter-se claro quem faz o quê no federalismo fiscal brasileiro. Os dados mostram, por um lado, que 100% do regime geral da previdência social, 95% da assistência social e 94% dos subsídios são bancados pelo orçamento federal. Por outro lado, os estados e os municípios, são responsáveis pela execução orçamentária de 67,8% da saúde, de 72% da educação e de 88,7% da segurança pública. Vale também dizer que 83,6% das compras governamentais são realizadas pelos governos subnacionais, gerando empregos e renda no país.

Também é preciso ter clareza da importância do ICMS na arrecadação tributária dos estados e dos municípios. Trata-se do principal imposto do país, representando 21% da carga tributária total. Representa 80% da arrecadação tributária dos estados, que repartem 25% da arrecadação com os municípios. Estimativas que circulam pelos corredores do Congresso mostram que o PLP 18 pode provocar perdas fiscais anuais para os estados em torno de R$ 100 bilhões. Somente São Paulo perderia cerca de R$ 15 bilhões por ano.

O conflito federativo decorrente da crise dos combustíveis deve ser entendido nesse contexto. De um lado, a União tenta reduzir o ICMS sobre combustíveis mediante alteração de leis federais, valendo-se de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). O propósito é conter a alta de preços que alimenta a inflação, objeto de atuação do BC, e afeta todos os segmentos populacionais. De outro, estados e municípios veem sua arrecadação subitamente erodida por decisões do governo federal, com impacto direto nos setores de saúde e educação, cujo custeio é condicionado pelas receitas de ICMS.

Iniciativas como o PLP nº 18/2022 evidenciam os riscos e instabilidades inerentes ao atual arranjo federativo brasileiro, em que questões conjunturais colocam os entes em rota de colisão. Comparar, sem qualificar, o comportamento dos estados brasileiros ao de seus congêneres americanos, que vêm reduzindo a tributação de combustíveis na crise, só confunde o debate e agrava o problema. É que no federalismo americano, o Governo federal e o Congresso Nacional não podem invadir a autonomia fiscal dos governos estaduais. Lá funciona para valer o mais América, menos Washington.

Ironicamente vemos o Ministério da Economia abraçar a tese do “Mais Brasília, Menos Brasil” às vésperas das eleições deste ano, apesar da experiência internacional mostrar que existem outros caminhos. Abandonaram a ladainha do “Mais Brasil, menos Brasília” usada como mantra nas eleições de 2018, quando lá defenderam a tese da maior autonomia para estados e municípios.

*SENADOR (PSDB-SP)