Folha de S. Paulo, 19/02/2004
Dos comentários que expressei nesta coluna na semana passada, o que mais surpreendeu alguns leitores foi minha preocupação com a possibilidade de um retrocesso social no Brasil a partir do governo do PT. Seria exagero de minha parte?
Infelizmente, não. Comecemos pelas condições de emprego e renda. Em 2003 (até novembro) o número de desempregados nas principais regiões metropolitanas aumentou 17% e o rendimento médio das pessoas ocupadas caiu 13%. Note-se que não houve nenhuma crise internacional por trás desses resultados. Pelo contrário, a conjuntura econômica internacional foi altamente favorável ao Brasil em 2003, com os preços de nossas exportações em alta, a demanda dinâmica, os juros internacionais no chão, o FMI bonzinho. O que houve foi a combinação entre o discurso voluntarista do PT no passado, com seus efeitos negativos sobre as expectativas (essa, sim, a herança negativa), e uma política econômico-financeira de aprendizes de feiticeiro -nenhuma inovação e excesso de dose nos impostos e nos juros, o que puxou a economia para baixo e ampliou a instabilidade fiscal. “Dosis facit venenum”, advertia meu grande professor de latim quando a classe exagerava na folia.
O retrocesso na política econômico-financeira estendeu-se às políticas sociais. Dos recursos aprovados para saneamento básico, no âmbito da Funasa, apenas R$ 1 em cada R$ 15 foi gasto até novembro. Manobras orçamentárias pouco ortodoxas provocaram perda de pelo menos R$ 500 milhões do Ministério da Saúde. E houve uma guinada perversa: esse ministério e o da Educação passaram a ser vítimas de contingenciamentos, mudando-se a prática, que já vinha se consolidando no governo FHC, de preservá-los de medidas desse tipo.
Ocorreu também a tentativa de um truque inconstitucional para cortar cerca de R$ 3,5 bilhões do Orçamento da Saúde para 2004, abortada pela mobilização de forças políticas e da sociedade.
Enquanto isso, exibia-se para o Brasil e para o mundo a sedução do Fome Zero, um programa que já mudou muitas vezes e que ainda não se sabe o que é. Suas ações nem sequer estão carimbadas no Orçamento, o que inviabiliza o acompanhamento do repasse de recursos. Até agora, o principal efeito do Fome Zero parece ter sido estatístico. Durante a campanha eleitoral, o PT afirmava que havia 50 milhões de famintos no Brasil. Chegando ao governo, esse número foi prontamente reestimado para 25 milhões.
Paralelamente, renasciam velhos projetos como o da distribuição de leite, focos de manipulação eleitoral e corrupção no passado. Outras medidas, apresentadas como inovações, ou não saíram do papel, como a do Primeiro Emprego, ou são a simples consolidação dos programas de transferência de renda herdados (bendita herança!) do governo Fernando Henrique, como o Bolsa-Família, que juntará o Bolsa-Escola, o Bolsa-Alimentação e o Auxílio-Gás. Apresentado como algo novo e redentor, enganando jornalistas estrangeiros, não acrescenta recursos e se baseia no cadastro único iniciado pelo governo anterior.
Por último, o mais grave: os cortes na área social tiveram e têm um impacto insignificante do ponto de vista das contas públicas. O efeito dessas reduções é psicológico junto à comunidade financeira internacional, valorizando a seus olhos o governo Lula. Ouve-se nesses círculos, surpresos com a dureza dos cortes: “They just did. How tough they are!”. Ou seja: “Puxa! Eles fizeram. Como são durões!”.