Tucano diz Lula adota políticas erradas e perde oportunidades por não saber o que fazer

O Globo, 8 de fevereiro de 2004.

Tereza Cruvinel

O GLOBO: Aos 13 meses de governo, o presidente Lula mantém elevados índices de popularidade. Isso dificulta o exercício da oposição?

JOSÉ SERRA: Até agora o governo Lula desfrutou de uma situação afortunada. Na área internacional, os juros são os mais baixos em décadas, os preços das exportações altamente favoráveis e a demanda pelos produtos brasileiros dinâmica. Internamente, há uma conjunção de fatores subjetivos.

Por exemplo?

SERRA: Primeiro, um grande crédito de confiança, dado por quem votou e por quem não votou no PT. Isto significa muita paciência e compreensão, no sentido de que o governo não pode tudo e é preciso dar-lhe tempo. Às elites e a muitos setores que não votaram em Lula agradou o fato de o PT não ter feito nada do que sempre pregou em matéria econômica. O governo passou a ser bem visto pelo que não fez. Há um ambiente de imprensa favorável, o Ministério Público encerrou os excessos. A oposição está longe do quanto pior, melhor, marca da oposição que o PT fez a Fernando Henrique. A oposição procura e por vezes consegue aperfeiçoar as propostas. Por fim, o governo tem enorme capacidade de centralizar e manejar a máquina de publicidade.

Qual é o mérito do presidente?

SERRA: Seu poder de comunicação. Há mais de 40 anos, desde Jânio Quadros, não se via um presidente capaz de falar deste jeito, de se aproximar tão bem das classes mais modestas, independentemente da coerência, da veracidade ou da relevância do que diga.

Até onde vai esta comparação com Jânio?

SERRA: Até a capacidade de convencimento, apesar da excentricidade do estilo.

Na sua opinião, o governo está aproveitando bem a lua-de-mel?

SERRA: Tem perdido oportunidades por não saber direito o que fazer, por deslumbramento e pela adoção de medidas equivocadas. Mas do ponto de vista do marketing, tem aproveitado bem. O resultado mais notável é o sucesso do Fome Zero, um programa que ninguém sabe direito o que é, não existe como tal, mais parecendo uma sopa de pedras. Há 26 programas, 17 deles vindos do governo passado, agrupados no que se chama Fome Zero. Entre eles, a velha merenda escolar, a alfabetização de adultos e o registro civil gratuito. Este fenômeno ainda será tema de teses de mestrado e doutorado nas faculdades de comunicação: como pôde um programa social puramente virtual, transformar-se num sucesso real, nacional e internacional.

O Bolsa Família é mais consistente?

SERRA: É outro caso de êxito publicitário. Até o jornal “The New York Times” acreditou que as transferências de renda às famílias pobres triplicaram, quando diminuíram em relação a 2002. Isso foi demonstrado com números. O programa não somou recursos novos, baseia-se na logística montada pelo governo Fernando Henrique. Busca consolidar programas já existentes.

E isso não é bom?

SERRA: Pode melhorar a focalização do gasto, e isso já estava sendo pensado. O cadastro único que estão usando também foi deixado pelo governo passado, mas até agora não aperfeiçoaram nada. Algumas ações até foram enriquecidas, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), a fim de direcionar recursos para programas fracassados, como a distribuição de leite, fonte de clientelismo político-eleitoral no passado.

Pelo o que o senhor diz, o governo só fala. Não é um exagero oposicionista?

SERRA: Falo também do que faz, meio de uma sopa de contradições. Ressuscitam velhos chavões contra empresários, bradam contra reajustes de preços, mas aumentam impostos inflacionários como a Cofins, para extrair mais R$ 7 bilhões da sociedade. A Petrobras indexa seus preços ao dólar, embora o petróleo já seja um insumo nacional. Em nome da austeridade fiscal, arrocharam os aposentados, estimularam as aposentadorias. Agora, anunciam um festival de contratações.

Não é eficiente trocar servidores terceirizados por concursados?

SERRA: Não é o caso dos 2.800 cargos de confiança que, somados a reajustes para cargos já existentes, custarão R$ 100 milhões anuais. Há mesmo um excesso de terceirizados mas duvido de que as 41 mil vagas abertas sejam só para isso.

O senhor tem criticado a política econômica, embora ela repita a de Fernando Henrique. Se fosse presidente, o senhor faria o mesmo?

SERRA: Não, não faria. Entre outras coisas porque houve um claro excesso de dosagem, e a dose faz o veneno. Mas não é produtivo o debate sobre o que eu teria feito, pois perdi a eleição. Relevante é analisar o que está sendo feito e apontar incoerências para ajudar o Brasil. Faz-se um discurso terceiro-mundista, denuncia-se o modelo perverso de desenvolvimento, fala-se mal da comunidade financeira internacional. Mas a política econômica segue à risca os manuais dessa comunidade. E rigorosamente nenhum novo modelo de desenvolvimento está sendo proposto ou praticado.

Erram só na dose?

SERRA: Não. Deixaram também de fazer os ajustes necessários. Parafraseando Talleyrand, eu diria que o PT no governo tudo esqueceu e nada aprendeu. Não aprendeu com seus erros e nem com os dos outros, inclusive os nossos. Por isso aplicam orgulhosos uma política de metas de inflação, como coisa do Primeiro Mundo. Aplicam de forma tosca e ignoram discussões a respeito que ocorre no Hemisfério Norte, de onde veio a receita.

Uma ruptura não teria levado à temida fuga dos investidores?

SERRA: Não se trata de ruptura, sempre defendi mudanças graduais. Mas é preciso fazer o necessário. Os investidores querem regras estáveis, coerência e mercado em expansão. Estas condições hoje não são boas no Brasil. O PT agora aposta no investimento estrangeiro direto para promover o desenvolvimento. Mas ele só chega se as economias vão bem, como acontece hoje na Índia e na China. Mas apesar da fé no papel redentor do capital estrangeiro, lançam incertezas sobre as regras já estabelecidas, o que serve para afastá-los. É o caso das mudanças nas agências reguladoras.

Há nisso falha de projeto ou contradições próprias de um partido como o PT?

SERRA: A dualidade entre discurso e prática, e entre as práticas, no fundo é uma estratégia. Reflete despreparo, confusão, mas é também funcional e útil. É como se cada lado falasse a um público diferente e, numa espécie de segmentação da comunicação. Veja os flagelados pelas enchentes. São confortados quando ouvem o presidente culpar governos passados e contar seus sofrimentos da juventude. Enquanto isso, instituições internacionais aplaudem o corte de investimentos, até contra enchentes, para garantir o número do superávit primário.

De todo modo, isso ajuda a prolongar a lua-de-mel. Até quando ela vai durar?

SERRA: É difícil dizer mas há fatores que impedem sua duração indefinida, como a falta de mudanças fortes e claras. Refiro-me a oferta de emprego e crescimento rápido. Enquanto isso, o PT vai aparelhando o Estado, colocando-o a seu serviço.

Outros partidos não fizeram o mesmo?

SERRA: O PT quer o poder como um meio e um fim em si mesmo. Por isso representa um bolchevismo sem utopia, patrimonialista e ponto. No lugar dos coronéis, o partido. Não há modelo novo de sociedade sendo buscado. Pelo contrário, estão revigorando o que há de pior na política brasileira: o enfraquecimento dos partidos, o troca-troca, o clientelismo. Fazem o relógio andar para trás quando se aliam às forças que, no passado, sustentaram o atraso e a desigualdade.

Seu sucessor na Saúde, o ministro Humberto Costa, tem feito uma gestão bastante continuísta, não?

SERRA: O problema do Ministério da Saúde, hoje, são as pressões que vêm do governo: o aperto financeiro e o loteamento político. Há clara intenção de quebrar a vinculação de recursos, criada para evitar que o setor volte a ser o colchão amortecedor de crises fiscais.

A reforma ministerial melhorou o governo?

SERRA: Além da cooptação, refletiu à falta de projeto. Jogaram fora o programa nacional-populista depois da eleição e não puseram nada no lugar. Por isso, passados mais de 25% do mandato, o MEC agora muda sua prioridade, do combate ao analfabetismo para a reforma universitária. Anunciam um seminário. No fundo, ganham tempo até descobrirem o que fazer com a Educação.

O nervosismo do mercado é fruto apenas dos sinais contraditórios?

SERRA: A abundante oferta de dólares para países emergentes endividados tem todas as características de bolha. Mas o governo Lula confundiu bolha com tendência. Daqui em diante, o mercado financeiro vai apressar a ruptura da bolha.

E o que virá depois?

SERRA: Tendo desaproveitado a bolha para construir uma situação mais sólida, o rumo que o governo Lula tomará é outra história. A primeira tendência será do tipo más de lo mismo. Até que, do ponto de vista político, isso não mais se sustente.

O que preocupa a médio prazo?

SERRA: A administração das adversidades. O governo FH tinha a virtude de lidar bem com as crises. Sempre saíam menores do Planalto e não se procurava bode expiatório. Receio que não seja assim com Lula, temo guinadas arriscadas e tensões fabricadas. Mas asseguro que o PSDB não lançará pedras contra o governo quando isso representar perdas para nosso povo.