Revista Época, 14/03/2015

Foi graças à habilidade e maestria de Tancredo Neves que o Brasil desfruta de seu mais longo e estável período democrático. Apesar de todos os percalços, a Nova República tem apego à democracia, à liberdade, à tolerância; paixão pela promoção de pobres e excluídos e da  redução das desigualdades graças às bases lançadas por Tancredo. Vivemos o período histórico com o maior número de conquistas de indiscutível qualidade política e humana no Brasil.

No seu discurso de posse, lido pelo ex-presidente José Sarney, Tancredo encerrou suas palavras conclamando que as forças políticas compreendessem que, na Nova República, o povo é, solenemente, o dono próprio destino. As palavras não poderiam ser mais atuais. É na fidelidade a esse legado que haveremos de manter e superar nossas dificuldades – e realizar mais e melhor pelo bem do povo brasileiro.

Conheci Tancredo quando era secretário de Planejamento de São Paulo, no governo Montoro e ele, governador de Minas. Os dois governos, mais o do Paraná, com José Richa (1934-2003), trabalhavam juntos para equacionar os problemas tributários e financeiros  em relação ao governo federal. Eu era muito ativo nessa batalha e acabamos criando uma linha direta. O Franco Montoro (1916-1999) se dispunha a ser candidato a presidente se houvesse eleições diretas, disputando internamente com o dr. Ulysses Guimarães (1916-1992). Mas, caso não fosse aprovada a emenda que instituía as eleições diretas, o Montoro iria apoiar o Tancredo no Colégio Eleitoral. Esse acordo foi selado num hotel em Araxá (MG), em reunião discreta. O Montoro me levou e eu assisti a conversa,  sem dar um pio.

Depois, já consagrado candidato do PMDB e da dissidência do PDS, o PFL, Tancredo convidou-me para coordenar seu plano de governo, presidindo uma comissão onde havia economistas ligados aos dois partidos. Chamava-se COPAG. O mais notável era o mestre Celso Furtado (1920-2004). Estavam lá também o Luciano Coutinho, o Sérgio de Freitas,o Sebastião Vital e vários outros.

Em razão disso passei a avistar-me com ele com alguma frequência. Percebi com clareza que  ele era o político mais hábil que eu havia conhecido, o que não o impedia de ter convicções muito claras sobre assuntos de Estado. Tinha grande espírito público.  Era culto, bem acima da média dos dirigentes políticos da época  (e de hoje).

Eu tinha um viés a favor do Tancredo: seu comportamento digno quando, ministro de Getúlio, ficara do lado do seu chefe até o fim, na hora das piores desgraças. E como líder de Jango no Congresso, repetira seu comportamento, como uma espécie de dissidência do PSD, que acabou embarcando no golpe militar.Admirava também sua tenacidade. Perdera a eleição para governador em Minas Gerais no início dos anos sessenta, derrotado por Magalhães Pinto, um político (e banqueiro) poderoso. Juscelino não o apoiara como devia. Tancredo ficou por baixo. Mas acabou sendo convidado para  chefiar o governo durante o intervalo parlamentarista. Seu desempenho, face às dificuldades do governo Jango foi considerado muito bom

Eu transmitia a ele o mais importante das discussões e elaborações da COPAG e meus pontos de vista. Lembro-me que disse a ele ser a favor da negociação com o FMI, tema muito controvertido na época. Ele me olhou com certo espanto, deu a entender  que concordava mas não queria que eu repetisse isso a ninguém.  Lembro-me de uma posição que me transmitiu com clareza: era contra as propostas de combater a superinflação mediante congelamento de preços – como veio a ser o Cruzado, no início de 1986, governo Sarney, com tablita e tudo.

Com muita antecipação, antes da eleição no Colégio Eleitoral, eu disse a ele que pretendia ser candidato a deputado em 1986 e que, por isso, não pretendia fazer parte do seu futuro ministério. Se fizesse, teria de desincompatibilizar-me menos de um ano depois. Isso o deixou à vontade até para pedir sugestões de nome para diferentes lugares do governo, ou conferir a respeito de nomes que lhe chegavam, tudo dentro do maior sigilo.

Uma vez, no seu apartamento no Rio ele me perguntou sobre a Fazenda. Eu disse que achava melhor ele convidar o Olavo Setubal (1923-2008). Melhor um banqueiro com visão nacional e espírito forte  do que algum economista que depois viraria banqueiro, eu disse. Ele ficou surpreso e respondeu: “Dr. Serra, banqueiro ministro da Fazenda, não”. Para mim, ficou logo claro que ele levaria o Francisco Dornelles, seu sobrinho, para a Fazenda. Queria um ministério do Planejamento mais voltado à elaboração de planos de médio e longo prazos

Na última vez que o vi, na Granja do Torto, durante o carnaval de 1985, ele me deu carona até o aeroporto de Brasília…

O então presidente eleito, Tancredo Neves, e José Serra, que era secretário de Planejamento do Estado de São Paulo, em 18 de fevereiro de 1985 (Foto: Arquivo/Folhapress)

 

*José Serra é senador pelo PSDB-SP