A implantação do CGF deveria merecer o apoio das principais forças políticas do Congresso

 

O Estado de São Paulo

08 Novembro 2018

Estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 2016, analisou a gestão fiscal e as instituições existentes em 16 países, incluindo o Brasil. Uma das conclusões da pesquisa deveria entrar na agenda do Congresso: a inexistência de um conselho para monitorar as contas públicas das três esferas de governo compromete a performance da política fiscal brasileira.

A crise fiscal no Brasil, sobretudo nos Estados, é alarmante. Segundo o Banco Mundial, tudo o mais constante, cerca de dez Estados estarão insolventes em 2021, se prevalecer o ritmo lento de recuperação econômica. A aritmética é simples: em 2017, as despesas incomprimíveis, determinadas por lei, passam de 100% das receitas líquidas em cinco Estados e de 90% em quase todos os governos estaduais!

Ironicamente, apesar de boa parte das receitas e despesas públicas no Brasil ser gerida pelos governos subnacionais – nesse critério, somos um dos países mais descentralizados do mundo -, a OCDE não classifica a Federação brasileira como descentralizada.

Nossos governos estaduais e municipais, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos e no Canadá, não gozam de autonomia completa para conduzir sua política fiscal: não criam regras próprias; não podem emitir títulos; não podem alterar bases de cálculo de tributos; e não têm discricionariedade para administrar suas despesas. No Brasil é o governo central que estabelece as regras do jogo. A Constituição federal, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o Código Tributário Nacional e a Lei Geral dos orçamentos públicos são normas de competência exclusiva da União.

No campo tributário, é a lei federal que estabelece os fatos geradores e as bases de cálculo dos impostos federais, estaduais e municipais. Em relação às despesas, é a norma federal que define quanto Estados e municípios podem gastar com educação e saúde. É, também, lei federal que proíbe Estados e municípios a emitirem títulos de dívida e regula as condições para demais operações de crédito. Por último, é a Constituição federal que cria o regime jurídico dos servidores das três esferas de governo, as regras da previdência do setor público e a vinculação da remuneração das carreiras da elite do Judiciário. Trata-se, enfim, de um líder federativo semelhante ao alemão.

Aqui surge uma questão fundamental. As inúmeras regras fiscais e orçamentárias previstas nas normas federais que valem para todos os entes não têm sido suficientes para evitar o atual colapso das contas públicas. Como foi possível enveredarmos por um caminho tão repleto de medidas fiscais mal chamadas “criativas”? Para citar alguns exemplos: transações realizadas fora do Orçamento, contabilização de despesas para contornar regras fiscais, aumento de despesas obrigatórias desacompanhadas das previsões de impacto fiscal e a concessão de incentivos tributários sem a correspondente compensação fiscal.

No artigo As Leis da Inércia, publicado nesta página no dia 28/6/2018, traçamos o seguinte diagnóstico: “Uma curiosa contradição marca nossas dificuldades fiscais: à medida que crescem o déficit e a dívida pública, aumenta o estoque de normas que, idealmente, deveriam facilitar o controle tanto do déficit quanto da dívida. Somos pródigos na edição de regras de controle fiscal. Mas elas são inconsistentes”. Vale, portanto, repetir a conclusão do estudo da OCDE: falta no País um órgão para monitorar a política fiscal adotada pela União, por Estados e municípios.

A boa notícia é que já existe previsão legal para a implantação deste órgão. Trata-se do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), previsto pela LRF. O conselho teria como objetivo harmonizar e padronizar os procedimentos e as práticas da gestão fixadas na LRF. Mais ainda, o novo órgão se dedicaria ao monitoramento da política fiscal adotada pelos governos federal, estadual e municipal dentro de uma base conceitual uniforme. Teria, até, a responsabilidade de divulgar as estatísticas fiscais em base padronizada, de modo a revelar os governos com melhores e piores indicadores fiscais.

No longo prazo, essa transparência ampla poderia ser o embrião de um sistema em que a solvência dos governos estaduais e municipais seria diretamente acompanhada pelo mercado. Os mais organizados passariam a ter acesso até mesmo ao mercado de capitais.

Diga-se que o Banco Mundial defende esse tipo de regime fiscal. Uma referência institucional a respeito é o Conselho de Estabilidade estabelecido em 2010 na Alemanha como parte das reformas implementadas depois da crise financeira internacional de 2008. O conselho é um órgão conjunto da Federação alemã e dos Estados federados, consagrado no Artigo 109 da Carta alemã. Foi criado para reforçar o quadro institucional e garantir a sustentabilidade dos orçamentos públicos do governo e dos Estados federados.

É importante, também, demarcar a fronteira institucional do CGF em relação à Instituição Fiscal Independente (IFI) criada no Senado Federal. A IFI tem como objetivo gerar análises independentes no âmbito da política fiscal. Seu papel é avaliar os parâmetros e cenários macroeconômicos que embasam o Orçamento no âmbito do governo federal. Funciona como um cão que late, mas não morde. Tais instituições na literatura internacional são conhecidas como whatchdog da política fiscal. Mas o CGF tem papel completamente distinto: seria um órgão com representação intergovernamental, dedicado à função de normatizar, harmonizar e padronizar as regras fiscais e orçamentárias no âmbito da Federação.

Nesse sentido, o Conselho de Gestão Fiscal seria o coração da responsabilidade fiscal na Federação brasileira. Permitiria evitar artifícios contábeis e fiscais que comprometem a credibilidade da política fiscal adotada nos três níveis de governo. Entre as reformas a serem implementadas no País para promover a estabilidade, a implantação do CGF deveria merecer o apoio das principais forças políticas do Congresso.

JOSÉ SERRA É SENADOR (PSDB-SP)